S. Martinho de Anta, 8 de Junho — As raízes começam a secar. Minha mãe está no fim, meu pai ensurdece, a beleza das giestas floridas não resiste ao espectáculo lancinante de ver crianças famintas a pastar ervas como animais. Só o Marão, ao longe, conserva a majestade de sempre e a sua pureza habitual de deus. Mas nem a olhá-lo pude esquecer por muito tempo a miséria desta gente. Uma fibra humana que me repuxa a alma cada vez com mais força desenhou-me cruamente naquele azul de ilusão e de evasão a legenda que conheço desde menino:
— Bem grande é o Marão, e não dá palha nem grão…
É um ferrete de esterilidade que a tradição pôs naquelas pedras deslumbradoras, e que eu, ao fim e ao cabo, tenho de aceitar como justo. A beleza é o ornamento da vida, mas a necessidade de comer é o seu suporte. Se eu andasse como estes garotos a roer leitugas pelas valetas, teria olhos para contemplar por um momento sequer aqueles cumes maravilhosos? Certamente que não. Por serem tão nobres e tão altos, e também porque estou bem jantado, demorei neles a atenção algum tempo transportado em tanta cor e relevo. Mas a urgência doutros valores acordou-me, a avisar-me peremptoriamente de que é preciso casar de uma vez para sempre o espírito com a matéria, tornar unidade o que nasceu para ser uno. O lume tem a sua lenha. Não somos anjos, e é preciso ter a lealdade de o reconhecer. De resto, espírito, espírito, e por detrás desta fachada esconde-se quase sempre uma cloaca sórdida de interesses mais grosseiros do que uma natural digestão. É urgente acabar com a hipocrisia do mundo moderno e regressar à sinceridade grega: ser conviva dum banquete universal, e fazer por pensar bem durante ele.
Miguel Torga, DIÁRIO III, p. 168.
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