(Do Diário dum expatriado)
Esta manhã, assim que abri os olhos, ouvi um piano que enchia a casa de sonoridade: Chopin, uma mazurca, e tocada por mão de mestre. Foi uma coisa que sempre me dispôs bem para todo o dia, acordar a ouvir música. Eu, que passei a infância e a mocidade entre harmonias, tenho vivido aqui tão sedento delas (se nem rádio pudemos ainda comprar!), que, ao ouvir aqueles acordes vigorosos, senti os olhos rasos de água. Assaltou-me logo o desejo de dançar, de cantar, de fazer versos. A Betsy, madrugadora, veio da cozinha a sorrir, com um ovo na mão (já cheirava a café):
– Bonito, hã? Mas um bocado «forte».
– Será cá do prédio?
– Deve ser a pequena do quarto andar. É pianista e faz ballet.
Vejo luzir o sol ainda fresco nas traseiras dos prédios para lá do quintal. A Betsy faz correr a grande porta de mogno que separa as duas salas, e levanta os estores das janelas da frente: o sol entra num jorro vivo e alegre, que atravessa a casa de lado a lado. Avisto a massa dum vermelho-escuro do seminário. Uma grande paz enche a rua, e esta amplidão tépida e vazia alegra-me o coração exilado. Quando penso no quartinho escuro do Village, onde nos inaugurámos!... Tudo isto é obra dela. Querida! Levanto-me e beijo-a com amor e gratidão.
A meio da tarde vejo entrar cá para baixo, pela porta gradeada sob a escada, um sujeito magro e lívido, que arrasta um pouco a perna. Olha-me com estranheza, nem corresponde ao meu leve cumprimento de cabeça. (Idiota, que tenho eu que estar a cumprimentar!) Quem será o bicho? – Dia de actividade intensa, pôr ordem nas minhas coisas, arrumar papéis. À uma saio para almoçar ao balcão dum coffee-shop, e regresso ao trabalho. Pela tarde vou esperar a Betsy. Voltamos para dar à casa os pequenos retoques necessários à nossa mais do que sóbria felicidade.
Seis, seis e meia, torno a ouvir música e apuro o ouvido: desta vez é cá em baixo. Uma voz quente, grave e sugestiva, lamento de mulher sem lágrimas, acompanhada ao piano. «Uma torch-singer!», diz a Betsy arregalando os olhos e soltando um assobio. E de truz que ela é, com o seu queixume e desafio um nada vicioso, de macha com cabelo na venta ou faca na liga. É a canção dos bas-fonds cá da terra. Nada mau, gozamos a ouvi-la. A casa cheia duma branda e surda vibração. Ainda não sabemos quem mora cá em baixo. Volta-me a imagem antipática do homem pálido: fiquei despeitado, mal comigo por ter cumprimentado sem conhecer.
À noite aparece por aqui o janitor, de óculos e poucas palavras, alemão, ares de juiz de paz. Indagamos a respeito dos vizinhos: diz vagamente que são professores, artistas... Imaginamos logo que são gente que ganha a vida a tocar e a cantar nos cabarés. Aquilo estavam a ensaiar-se para o floor-show desta noite. Que sorte, hã! Vamos ter de graça, ao vivo, um género que ainda conserva para mim a irresistível atracção do novo, embora um quase-nada louche. Nova Iorque excita-me com a sua trágica e convulsiva agitação. Oxalá isto dure... Vamos cedo para a cama. A Betsy, com bom senso: «Não se entusiasme de mais, que esta gente dos night-clubs às vezes tem uns hábitos um bocado...» E não termina a frase.
( – de Dezembro)
Às duas da manhã acordo sobressaltado: Que é isto, ouço uma orquestra? Sento-me na cama a escutar, de boca aberta. A Betsy dorme; esta pequena tem um sono capaz de resistir a um terremoto, é da consciência tranquila. O som vem de baixo, firme, grave, abafado, forte o bastante para me ter despertado. A casa vibra surdamente. Diacho, parece-me um bocado cedo (ou demasiado tarde) para este género de ensaios. Terão voltado do...? Mas espera, isto é Wagner! Diabo, artistas de cabaré e tocam Wagner? Hum, talvez para variar... Artistas com outras aspirações. Mas senhor, quantos são precisos, para produzir assim o efeito duma orquestra? A casa é vasta, cabem nela vinte ou mais pessoas à vontade. Uma orquestra pode tocar, mas é positivo que não pode morar num apartamento deste tamanho! Não sei que pensar. O concerto dura até às três e tal da madrugada, depois a música extingue-se e fico a ouvir um murmúrio de vozes: estão a discutir talvez a execução. Adormeço sem conseguir saber se saiu alguém da casa. Lá que eles tocam na perfeição, disso não há dúvida.
( – de Dezembro)
Estamos a dois passos do Natal, O céu toldou-se, foi-se embora o sol que gozámos quase durante duas semanas, mas em compensação o frio abateu. Veio a chuva, e os dias, mais curtos, estão fuscos. No lento escurecer destas tardes grisalhas, vejo os transeuntes apressados que voltam das docas ou do emprego, a caminho das sopas, sombras anónimas curvadas debaixo do vento e do aguaceiro. Uma paz irreal parece escorrer do céu, misto de azul-pálido e rosa-diluído, com a chuva. O seminário cresce, avulta no crepúsculo; e de súbito os vitrais da igreja acendem-se lá em baixo, luz frouxa, de caleidoscópio, com predomínios de ouro. Dão quase a ilusão... No silêncio atapetado de verdura e humidade, por entre o sussurro distante e ameaçador da metrópole, chega até mim a ressonância grave dos cânticos e a voz abafada do órgão. Lá adiante, na Nona Avenida, acendem-se as insígnias a gás néon das tabernas e bares, que enchem a névoa dum fulgor de lareiras acesas. Mais longe são os cinemas que espalham no ar uma trepidação multicor. E só agora eu compreendo a atracção de todos estes ópios sobre a gente que passa nas ruas molhadas e hostis, sob o peso dum dia de fadigas e na perspectiva talvez dum serão solitário e angustioso. Os homens procuram os seus narcóticos.
Altas horas da noite, findo o meu trabalho, ergo-me da mesa e vou até à janela olhar a grande massa escura do seminário: telhados, torres, coruchéus, recortam-se na névoa ensanguentada de clarões. A paz de Deus no tumulto incessante. Vejo uma luz acender-se numa distante mansarda Tudor: alguém que estuda ou reza. Os grandes olmeiros da cerca recortam-se até aos raminhos mais altos, todos nus, com a precisão duma miniatura japonesa na laca do céu de incêndio. Os troncos enormes escorrem água, reluzem sinistramente à passagem dos faróis dum auto. E a cidade exala de repente uma solidão que me sufoca. Sinto o desejo de fugir antes que isto se apodere de mim... só poderia libertar-me se escrevesse um poema.
José Rodrigues Miguéis
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