quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Os Cordoeiros: Terça-feira, Dezembro 30 [2003]

2. Os media.

1
Pierre Bourdieu[1] entende que o campo do jornalismo se estrutura em volta de dois «polos». Situam-se próximo do «pólo intelectual» os profissionais que privilegiam, como fonte de legitimação, o reconhecimento dos seus pares, efectuado com base no respeito pelos «valores» da deontologia profissional; colocam-se junto do «pólo comercial» aqueles que determinam o seu comportamento essencialmente pela «sanção, directa, da clientela, ou, Indirecta, da audiência».[2]
«A hierarquízação segundo o critério externo, que se traduz no êxito das vendas, corresponde quase ao inverso da hierarquização segundo o critério interno, que requer a seriedade jornalística»[3], sublinha Bourdieu. Este balanceamento entre duas formas de legitimação (cultural ou comercial; interna e externa) reflecte-se quer no conjunto do «campo jornalístico» quer dentro de cada orgâo de informação escrita, radiofónica ou televisiva.
O «polo cultural» organiza-se em função do auto controlo e da auto-avaliação dos jornalistas. O respeito pela deontologia, entendida como conjunto de deveres profissionais, representa o principal fundamento das «reputações de honorabilidade profissional».
O «polo comercial», pelo contrário, valoriza os critério relacionados com a audiência «na produção (' simples, ' curto, etc.) ou na avaliação dos produtos e dos produtores (' passa bem na televisão, “ vende bem”, etc.)».
A adesão ao «polo comercial» beneficia certo «tipo» de jornalistas, mais precisamente, na terminologia de Pierre Bourdieu, «os agentes dotados de predisposições profissionais que os inclinam a colocar toda a pratica jornalística sob o signo da velocidade (ou da precipitação) e da renovação constante»[4].
O mimetismo entre meios de comunicação social representa outro «efeito de campo» no jornalismo contemporâneo: «a concorrência estimula o exercício de uma vígílâncía permanente (que pode ir até à espionagem mútua) das actividades dos concorrentes, a fim de tirar partido das suas falhas, evitando incorrer nos mesmos erros, e de combater os seus êxitos, tentando utilizar os supostos instrumentos do respectivo sucesso...>.[5]


A tendência para regular o comportamento de cada órgão jornalístico pela orientação do concorrente conduz à repetição de temas, de tiques estilísticos ou de personalidades entrevistadas. 0 tropismo da imitação produz resultados contrários aos efeitos criativos geralmente atribuídos à luta pela conquista de públicos: «a concorrência, neste como noutros domínios, em vez de ser automaticamente geradora de originalidade e de diversidade, tende multas vezes a favorecer a uniformidade da oferta, como se pode facilmente verificar comparando os conteúdos dos grandes semanários ou das estações de rádio ou dos canais de televisão de grande audiência.
A deontologia profissional deveria ser instrumento de regulação das boas práticas jornalistas.
O Código deontológico dos Jornalistas portugueses constitui um esforço de intervenção quer nas áreas pragmáticas, quer na área técnica, procurando temas consensuais no interior de uma categoria profissional bem dividida.
A utilidade do Código deontológico será, nesse aspecto útil se se mostrar adequado aos constrangimentos dos objectivos empresariais impostos pela legislação (cf. v,g, o Estatuto dos Jornalistas, cf. Lei n.º 1/99, de 13.01, que aprova o Estatuto dos Jornalistas.).
Sem dúvida que os jornalistas têm liberdade de fazer as investigações que entenderem, porém os cidadãos da República têm de ver assegurado por uma questão de interesse público o seu direito à dignidade . cf. art. 1. ° e 2.° da CRP.


"Porque o sol e a chuva protegem só as ervas daninhas
e a geada, depois de queimar o trigo, não volta mais."


(Cesare Pavese, os dois últimos versos do poema "eles estiveram lá", inserido no livro "Trabalhar Cansa", edição bilingue, tradução de Carlos Leite, Cotovia,1997, pág.61).
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[1] Pierre Bourdieu, «L'emprise du journalisme», in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n° 101\102, Março de 1994, pp. 3-9.
[2] Pierre Bourdieu, idem, pp. 4-5.
[3] Pierre Bourdieu, idem, p. 5, nota de rodapé n° 3
[4] Pierre Bourdieu, idem, ibidem
[5] Pierre Bourdieu, idem, ibidem


P.B.

Cântico negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


José Régio

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