Rio de Onor, 28 de Setembro [1946]
REGRESSO
Bicho que nunca se ergueu,
Instinto desprevenido,
Digam que não, mas sou eu,
Aqui deitado e despido.
Sinto a vida como um seio
Que lateja de calor;
Como um ventre onde semeio
O meu sémen criador.
Ouço cantar as raízes,
E vejo seixos fechados
Reluzentes e felizes
Por serem acarinhados.
As linhas de água corrente
Passam pelas minhas veias.
Entre o meu corpo e a nascente
Não há distâncias alheias.
Cheira-me a terra a tutano,
Mastigo-a e sabe-me bem.
Animal, mas desumano,
Recebo inteiro o que vem.
Estou na origem do meu ser,
Primário como um Adão.
Que pena eu não me esquecer
De cantar esta emoção!
Miguel Torga, DIÁRIO IV, p. 12
Sem comentários:
Enviar um comentário