Quando eu tinha nove anos, a Beira era a maior cidade do mundo. As avenidas de minha terra natal eram as mais largas do universo e apenas se esperava que o futuro, triunfal, por ali desfilasse. Na Praça do Município cabiam os mais demorados domingos da História, e o Chiveve competia com os mais amazónicos estuários.
A estação ferroviária era de tal dimensão que ali poderia desembarcar Sophia Loren ou uma outra artista saída das matinés do Olympia. As mangas do Dondo eram comidas em todo o planeta e, do alto do farol do Macúti, se contemplavam extensões que fariam inveja aos astronautas.
De noite, enquanto nos chegavam os sons dos batuques do Chipangara, eu e o meu irmão discutíamos, especialistas em lonjuras. Ele assegurava que a floresta de Inhaminga era o lugar mais distante do planeta. Eu abria o mapa-mundo e a Beira se confirmava epicentro cósmico. Confortado, adormecia com pena dos meninos que nasciam noutros periféricos lugares.
Certa vez embarquei num avião para rumar a Lourenço Marques. A família veio despedir-se, em lágrimas, ao maior aeroporto do mundo e era como se eu partisse para além do último horizonte. A malta do bairro também foi ao aeroporto e lançou-me um derradeiro olhar, misto de inveja e raiva. Eu ia para território rival, para terra dos «laurentinos», contaminar-me de valores tribais alheios.
Regressei uma semana depois com a suspeita de que havia lugares mais distantes que Inhaminga e cidades maiores que a minha. Nos dias subsequentes, fui colocado em quarentena, punido por confessar que, afinal, outros poderiam haver.
Na altura, eu não sabia que as pequenas cidades vivem sempre o sonho de serem outra coisa. Sonham ser grandes cidades. A minha terra natal, era, afinal, um lugar acanhado, onde o mundo chegava em segunda mão. Talvez, por isso, o tamanho dos nossos sonhos fosse reforçado. Talvez, por isso, o meu lugar tivesse ficado maior quando o soube pequeno. Naquele momento, porém, eu estava sendo penalizado como Galileu que ousou descentrar o cosmos. Deixado em abandono pelos amigos, fui pescar para os lados do porto. Ao passar pelo Beira Terrace, uma multidão me alertou: num lugar onde nada sucedia algo trágico acontecera. Estavam retirando das águas os corpos de dois jovens que se tinham suicidado. Um detalhe me chamou a atenção: estavam amarrados pelos pulsos, um arame lhes prendia o fatal destino. Eram dois namorados, impedidos de exercer o seu amor porque pertenciam a raças diferentes.
Sentado na amurada do cais, sem nenhuma vontade de lançar a linha, olhei a cidade e ela, pela primeira vez, me pareceu pequena. Como poderia ser grande um lugar se nele não cabia o amor de dois anónimos adolescentes? Até àquela tarde eu era ainda um moço capaz de sonhar vidas e viver sonhos.
Naquele momento creio ter entendido: a cidade não é um lugar. É a moldura de uma vida, um chão para a memória. Enrolei a linha, e regressei a casa, o poente avermelhando a paisagem e os flamingos trazendo o céu para junto da terra. Então, ganhei certeza: a cidade em que nasci estava destinada a nascer de mim. Um arame invisível nos prendia os pulsos, a mim e à minha terra natal. Se alguma vez nos atirássemos sobre o abismo não seria para nos afundarmos mas para ganharmos voo, o mesmo voo dos flamingos cruzando os poentes sobre o rio Pungwé.
(Abril de 2007)
Mia Couto, PENSAGEIRO FREQUENTE
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