quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O NATAL DO DR. CROSBY (4)


(Do Diário dum expatriado)

( de Dezembro)

Tivemos esta tarde cá em casa a vizinha do último andar, Swissabelle ou coisa assim; a Betsy encontrou-a à porta e convidou-a a entrar. Sem ser bonita, é um amor de rapariga. Grandes olhos escuros, redondos e expressivos na cara branca sem maquilhagem, a boca saliente e cheia de movimento. Um pouquinho cheia, nada de americana standard, só osso e sex-appeal, mas a cintura duma delgadeza quase inverosímil, entre os seios afirmativos e as ancas robustas. Pernas fortes, admiravelmente torneadas, pernas de danseuse que ela não esconde, ao contrário.
Exuberante, impulsiva, à primeira vista um quase nada de pancada na mola: conversa (ou representa?) sentada, em pé, erguendo-se nos bicos dos sapatos rasos, fazendo piruetas, e caindo escanchada no parquê. Abre os olhos redondos e as mãos espalmadas. Parece que está no tablado, e no entanto encontro nela a naturalidade e a candura duma infância madura e extrovertida.
Rimo-nos a perder com a história do Crosby, que ela nos conta com muitos pormenores edificantes e grande poder mímico: parece que os hábitos do sujeito, «os musicais e os outros», datam de longe, do tempo da Princeton. Até já foi corrido dum college onde ensinava. A gente que aqui morava antes de nós mudou-se por não poder aturar mais o escândalo. «Mas porque é que não chamam a polícia?», pergunto. Nem falar nisso. Casa onde entra a polícia fica desacreditada. Só mesmo em caso de morte, crime ou incêndio. Essa agora! Mas ultimamente isto tem piorado imenso. O homem parece querer viver em guerra aberta com todo o mundo. Além de misógíno, é misantropo. Estamos servidos! Olho para a Betsy: Onde nós nos viemos meter! Parece que não há remédio senão recorrer aos tribunais. Com as Festas vai ser o bonito!
Com este meu jeito de transfigurar em humor tudo o que me faz doer, conto-lhe no meu inglês atrapalhado as experiências destes primeiros tempos, e ela ri coreograficamente, quer dizer, com o corpo inteiro. Ficamos muito amigos. (Aqui as amizades fazem-se e desfazem-se depressa.) Como a Betsy está fora todo o dia, a Swissabelle promete vir fazer-me companhia uma vez por outra. Escusado será dizer que aceito com alvoroço, e acrescento: «Pode vir dançar aqui quando os vizinhos fizerem música: espaço não falta!» A querida Betsy olha-me com fingida severidade. Mas ela bem sabe que a minha curiosidade tem tanto de honesta como de ilimitada. É um anjo duma pequena, nada ciumenta. – Ficou tudo combinado: se as coisas continuam assim por mais alguns dias, vamos todos unir-nos. Ou ele entra nos eixos, ou vai para a rua. O advogado cá de cima toma conta do caso.

( de Dezembro)

O que vale é que o meu inglês melhora a olhos vistos. O Nathan tem-me sido muito dedicado. Para estarmos mais perto um do outro, mudou-se para um quarto quase aqui ao lado. Agora, quando volta do serviço, pelas quatro e meia, bate-me ao ferrolho. Eu faço café de saco (diz ele que não se bebe outro assim, nem no Village) e ficamos a dar à língua. Conto-lhe histórias, falo-lhe dos meus projectos, fazemos planos. Sinto-me feliz e ele fica contente. Disse-me há dias: «Esqueça que fala outra língua, e atire-se já a escrever isso tudo em inglês, esta mesma noite. Não altere uma palavra, conserve-lhe o sabor da espontaneidade. Vá, que eu depois dou-lhe uma ajuda, tempo não me falta – infelizmente!» Sim, mas há que ganhar o pão de cada dia, e depois o Espinosa, e eu ando mal dormido... Desculpas de mau pagador. A vida ainda exerce sobre mim uma fascinação demasiado grande para me permitir consagrar-me com paciência beneditina a uma «obra»... O facto é que, graças ao Nathan, nestes últimos dias o meu inglês desabrochou: parece que se rompeu cá por dentro uma casquinha de ovo, e que a expressão me saiu toda feita, como um pinto!
Nevou a noite inteira, e o seminário está lindo. Os relvados são um tapete de alvura deslumbrante, e as árvores, carregadas deste cimento imponderável que brandamente cai do céu, parecem de bronze negro. A neve dá um relevo, uma pureza e um recolhimento indescritíveis a todas as coisas. As cornijas e saliências dos edifícios, com a sua sobrecarga de neve, ganham outro poder decorativo. Redobra o silêncio, há no ar um não-sei-quê de festivo. A alvura dos telhados reflecte o azul do céu, mas onde o sol bate é tudo rosado e espumoso. A neve faz literatura... Acendo um lume na lareira, e é um regalo ficar aqui a trabalhar. Ah, será possível ser pobre e viver contente? – Não tenho ouvido os vizinhos de baixo, talvez estejam para fora a gozar férias. Se por lá ficassem! Só lá em cima a Swissabelle toca o seu Debussy com aplicação e compreensão: La neige tombe... Mesmo próprio para esta atmosfera irreal, quase de submersão. Há momentos em que todos os homens sentem a necessidade dum refúgio, dum momentâneo escape: talvez para melhor se concentrarem na luta? Se isto durasse, seria bom de mais, quase mentira, o Paraíso! – Entretanto, trabalho mecanicamente pelo ganha-pão. Com as idas à Biblioteca, as voltas a dar, ver gente, o tempo vai-se. Acabarei por me resignar a tudo isto? Há uma coisa mais alta ou profunda que nos prende em toda a parte...
Seis da tarde, nem tanto, truz-truz: vou abrir e empalideço. É o vizinho de baixo! Calculou apanhar-me sozinho em casa, e prega-me a surpresa. Mas então sempre cá estava! Tão calado, aqui há coisa. Olho-o da cabeça aos pés, na sua elegância descuidada de anglo-saxão, que não me esconde seja o que for de inquietante. E eu que hoje ainda nem fiz a barba! Fita-me com mal disfarçado desdém, e torce a boca no tal sorriso que a Betsy chamou de «enguia»: sorriso amarelo, que pretende passar por correcto e cordial. Faz um gesto como se tencionasse entrar, mas eu finjo que não percebo e atravesso-me na abertura da porta, com a mão direita no alizar. Fale aqui mesmo, se quiser. Ele fica lívido. Depois, fazendo esforços visíveis para manter o aprumo e o sorriso, falsos ambos como Judas, declara ao que vem: Se não haveria maneira de chegarmos a acordo, as minhas «represálias» estão-no incomodando. E porque é que eu não mando forrar o parquê com tapetes, para abafar o rumor dos passos!
Esta dos tapetes faz-me transbordar as medidas. Como a Betsy está fora, aproveito o ensejo e faço o gosto ao dedo: «Não há nada a conversar. Ou o senhor modera o seu monstro musical, e passa a tocar a horas mais humanas, ou vamos para a frente com a queixa colectiva. Na guerra como na guerra. Já temos advogado. O resto é consigo.»
Vinha pedir batatinhas, levou pelas ventas. Erguemos a voz, ele recuou um passo, verde, já com espuma aos cantos da boca, as mãos em garra, e a certa altura tratou-me de «estrangeiro» e «hipocondríaco». Dominei-me para não lhe ir aos queixos ali mesmo e, pensando que os outros vizinhos deviam estar lá em cima a gozar a cena, ri-me: «Eu é que não preciso de lhe dizer o bonito nome que todos aqui lhe dão!» Foi um arraial no vestíbulo. Ele não quis ouvir mais: disparou por ali fora, arrastando a perna odiosa no mosaico, e de longe ainda me xingou de «judeu» e outras finezas. (Quando querem ofender um estranho chamam-lhe logo judeu.) Fechei a porta, com o pulso acelerado, mas gozei o meu migalho. Vê-se logo que a conversa com o Nathan me tem desenferrujado a língua. Judeu. Deixa que hei-de contar esta ao Nathan. Ele é que diz que por cá não há anti-semitismo! Se o Crosby não dá o fora tão depressa, tinha havido banzé.
A Betsy volta e alarma-se com a minha narração do incidente: «Olhe que estes sujeitos às vezes têm impulsos criminosos. Capaz é ele de pegar fogo à casa!» Não te rales, filha: ele tem demasiado amor à sua discoteca.
À noite vamos a casa da Swissabelle. Serão bem passado. Conversamos e rimos até às onze e meia. Ela tocou, depois dançou para nós ao som da grafonola. O marido, um rapaz seco, arruivado e simples, mostrou-nos os seus cartões; comerciais, é claro, que remédio senão ganhar a vida. Mas nada maus. Voltei para baixo contente. Que genuíno e gostoso é por vezes o convívio desta gente que trabalha duro pelo pão: tão sem veneno, sem falsas complicações de estetas nem má fé! Uma independência tocada de responsabilidade, uma exuberância restringida na disciplina da criação. Se todos fossem assim, se não houvesse os Crosby e os outros!

( –  de Dezembro)

Há dias que nem tomo notas. Música de dia e de noite. Tenho os nervos num rolo de arame farpado. Nunca vou tranquilo para a cama: se a música não vem, impaciento-me como um condenado à morte que espera a descarga eléctrica; se ela vem, irrito-me, salto da cama abaixo, faço um barulho dos demónios. A Betsy, coitada, esforça-se por conservar a calma. Mas nestas condições é difícil; já não tem o mesmo sono sossegado. Serei eu a causa disto? Às vezes penso nas dificuldades que lhe vim trazer, e assalta-me uma espécie de remorso.
Mas ainda temos algumas consolações: a Mina e o Nathan jantaram ontem connosco, à noite veio o poeta I. com a mulher e um jornalista amigo. O nosso pequeno círculo vai-se alargando, sinto-me apesar de tudo mais optimista e confiante. Esta manhã, no fervor do ambiente cheio de antecipações de tragédia, acordei com um poema na boca e corri a escrevê-lo... Ainda não secou de todo a minha fonte!


José Rodrigues Miguéis 

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