quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O NATAL DO DR. CROSBY (3)

(Do Diário dum expatriado)


( de Dezembro)

Hoje, em plena tarde, Grieg. Sentado à mesa, a pôr em ordem as minhas notas, dei um pulo. Grieg! Se ao menos fosse a torch-singer! Devem talvez achar o Grieg adequado à estação festiva. A casa vibra e estremece, ecoa como uma caixa de ressonância à Marcha dos Anões, tocada com fôlego, como se estivéssemos num concerto popular do Hipódromo. Agora que eu começava a enfronhar-me no Espinosa! Assim é impossível a gente concentrar-se, trabalhar. Grieg. Não há nada que eu adore tanto como a música, mas nada pode perturbar tanto a minha atenção, paralisando-me para qualquer esforço mental. É outro ópio. Começo a andar inquieto com isto. Há três ou quatro dias que pouco faço. Música, música... Nem sempre galinha! E depois há as preferências de cada um, ou a disposição que é necessária para a gente se concentrar a ouvir Beethoven ou a «Maria Cachucha». A música, tão profundamente subjectiva nos seus efeitos, só se ouve bem colectivamente: uma coisa é ouvir uma sinfonia enterrado numa poltrona, ou empoleirado no galinheiro duma sala de concertos, e outra, muito diferente, é teimar em pensar, dormir ou trabalhar (ou mesmo ouvir música!) sentado em cima dum órgão gigantesco, com esta comichão nas solas dos sapatos e o corpo todo numa espécie de dança de S. Vito ou paralisia agitante. É-me impossível meditar esta passagem da Ética com a casa inteira a trepidar debaixo dos pés, tomada do divino fervor sensual de Schubert... Sim, porque agora é Schubert! Suspendo o trabalho e vou-me deitar de papo para o ar, até que isto passe. Tchaikovsky, Brahms, Vila-Lobos...
Resultado: não fiz mais nada. Fumei, dei voltas pela casa, saí danado para tomar um whisky abominável num bar da Nona. Uma tarde tão boa, tão disposta ao trabalho, vejam lá vocês que estragos pode fazer o génio (mau) da música. Ao sair cruzei-me com a vizinha do último andar: cumprimentos muito efusivos, ela subiu assobiando, em passo de dança, com uma ligeireza de ave. (Estou a ter umas imagens bem originais!) Bonita perna. Não a tenho ouvido tocar piano. Talvez ela não queira entrar em concorrência com a gente cá de baixo. O que mais me intriga é ainda não ter dado de cara com estes vizinhos. Só o dono da casa, de fugida, o tal que arrasta a perna, Crosley ou Crosby, não sei ao certo.

( de Dezembro)

Enquanto eu grelhava o bife do jantar, a Betsy foi lá baixo reclamar cortesmente contra a inflação musical que nos está dando uma existência de pombos de coreto; e indagar se não seria possível tocarem um pouco mais de manso e a horas menos desumanas. (Nesta terra são sempre as mulheres que se encarregam destas missões espinhosas; os homens, rudes entre si, são atenciosos e galantes com elas, e isso, evitando os conflitos, ajuda a resolver muita coisa.) A Betsy volta com uma expressão de espanto divertido.
– E então?
Ela fecha a porta e sussurra:
– Surpresa!
Em resumo: o Crosley ou Crosby mandou-a logo entrar, com um sorriso de enguia, e explicou que não há tal «orquestra» nem «cantores» na casa: é tudo música de conserva! Bem me queria parecer. Mostrou-lhe as duas salas completamente forradas duma discoteca fabulosa, até dois terços de altura das paredes. «Música para cem anos!», diz ela. Têm no fundo da casa uns aparelhos de lâmpadas, complicados, pick-ups, e alto-falantes montados pela casa toda. Uma destas instalações capazes de encher de sons uma catedral ou um estádio. Parece um estúdio de rádio. O Crosby (afinal é Crosby, como o Bing) é professor dum liceu da vizinhança, e vive na companhia dum rapaz mais novo do que ele, loiro e rosado, o Gaylord, verdadeiro playboy saído como ele da madre Princeton. Não há mais ninguém na casa, a não ser os dois gatos siameses que nos espreitam da marquise.
– Vê-se logo que são um casal de pombinhos! – diz a Betsy com uma careta e metendo a faca no bife. – O Gaylord parece amável; mas o Crosby é azedo e escarninho. Quando fala torce a boca, não sei se é tique se desdém. Devem-se ter rido à nossa custa.
– Fala mais baixo, filha. Eles podem-te ouvir.
– Que lhe importa a você? Não estamos na terra da liberdade? O Crosby irritou-se logo, declarou que está na sua casa, é amador de boa música, e quem não gostar que se mude. Os que cá moravam antes de nós foram-se embora por causa disso. O outro ainda quis deitar água na fervura, mas nada feito. Ouviste-o bater com a porta?
– Estamos fritos. Por que diabo é que o janitor não nos preveniu?
Fico mal-humorado, amargado, parece que nem o bife me assenta. Desato logo a pensar em represálias: bater com os pés, entornar águas, fazer barulho às horas a que eles dormem, se dormem... O curioso é que, enquanto julguei que eram músicos a valer, isto foi-me tolerável e até gostei; mas agora, quando penso que em vez duma torch-singer era um disco, sinto-me vexado, logrado, como se me tivessem impingido o conto do vigário. Onde a gente se veio meter! No antro dum melómano, e além disso maricas. – Furioso, agarro o Pirilau (é o meu gato amarelo) pelo cachaço e atiro com ele para o quintal, a miar de desespero.
Por sinal, a noite pôs-se de chuva, e ele só reapareceu depois das onze: acompanhado de outro gato amarelo, exactamente igual, ambos com o pêlo empastado de água. Correram juntos para o prato da comida. De começo não fui capaz de os distinguir: foi preciso a Betsy mostrar-me que o Pirilau tem os olhos verdes, e o outro tem-nos dourados. Deve haver uma solidariedade misteriosa entre os tarecos amarelos, talvez repudiados como «inferiores» pela sociedade dos gatos de boa família!

( de Dezembro)

Parece que a reclamação, feita nos termos da melhor vizinhança, teve resultado contraproducente: agora tocam a todas as horas, sem programa definido, e com mais fuoco do que nunca. Vê-se perfeitamente que estão no propósito de nos irritar. E ainda a Betsy não quer que eu lhe vá para a cara! Este homem estranho, lívido, com a perna arrastada, ainda nos vai dar que fazer. Sinto que põe em perigo os meus planos de trabalho. Detesto viver em guerra surda seja com quem for, prefiro o conflito declarado. Habitualmente, ou me submeto ou dou pancada. «Manias», diz a Betsy. «É por ser tão tímido, um atado, que você vai logo às do cabo. Aguenta tudo, rói-se lá por dentro, deixa-se humilhar, e quando não pode mais consigo mesmo, então quer partir caras. Faça como eu, leve isto a rir. Deixe-se de cumprimentos, para que é que você quer viver de bem com os vizinhos? Cada um na sua casa. Se eles teimarem, vamos para a Justiça.»
Mas eu é que não quero nada com a Justiça, não quero complicações. Quero a minha paz. E quem tem que meditar o Espinosa, e aturar esta sinfonia a todas as horas sou eu. Alta noite, quando eles fazem música e eu dou voltas na cama sem poder conciliar o sono, você dorme como um anjo que é! – e beijo-a. Também é o que nos vale: unidos.
A noite passada, música até depois das três. Conversa em altos brados, tinir de copos, cheiro de café fervido, fumo de cigarros a sair por todas as fendas e buracos, e grande iluminação a jorrar para o quintal. Até houve berros da vizinhança lá daquele lado, arremessaram garrafas vazias cá para o quintal, como no Village. Ando a dormir mal, o Natal à porta, e o meu trabalho quase parado. Desconfio que já criei um complexo (tudo agora por cá são «complexos»): quando ouço os passos do professor no mosaico do hall, um tacão irritado, o outro a arrastar, sinto ganas de ir lá fora insultá-lo, empalideço, tenho palpitações, vivo enfim na expectativa da agressão. Mas que remédio senão aguentar e calar. Um estrangeiro... O sujeito deve ser bom psicólogo: sabe que cheguei há pouco tempo e que me exprimo com dificuldade, e tira partido, abusa, procura intimidar-me. É um chauvinista. Já por cá tenho visto outros...
É um homem estranho e furtivo, cuja presença basta para criar um constrangimento. Tenho a impressão de que o Gaylord, o amigo, quando entra em casa pelo fim da tarde, abaixa o registo do som. Depois ouço discussões abafadas, brados irritados – é o Crosby –, um bater exasperado de portas, passos rápidos na escada. Corro à janela e vejo-o sair: atira-me um olhar de ódio. Coxeia um pouco, arrasta a perna, bate os tacões sem borracha. Não tenho dúvida de que as represálias vêm dele.
O seminário continua a guardar a sua impassibilidade. Em tudo isto uma subtil contradição... Há dias (passou-me registá-lo) houve grande cerimónia, talvez encerramento de aulas: muitos automóveis na rua, convidados em trajos de gala, música sacra e cantoria, paramentos solenes, procissão no relvado com pálio e cruzes alçadas, até parecia uma festa lá na minha aldeia. Veio a chuva afugentá-los para dentro do edifício. 


José Rodrigues Miguéis 

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