Douro, 15 de Julho — A escola onde fiz os meus primeiros exames, e um rancho de crianças à porta, à espera de fazer os seus.
Pacoviozitos, como eu fui, que desceram da serra e vieram pagar o seu ingénuo tributo à cultura. Alguns viram hoje estradas e automóveis pela primeira vez. Mas mesmo com a lã das ovelhas agarrada aos miolos, concebem um triângulo isósceles, aceitam a noção de um mundo redondo, dividem uma página de prosa em orações. O que é o poder das ideias!
Lá ficaram a garrular, enquanto a camionete que me arrastava descia as encostas do Pinhão, cada vez mais olímpicas. E pus-me a pensar na barbaridade que vai ser abandonar aqueles espíritos à pedagogia das pedras. Dos meus companheiros de classe, alguns finos como corais, poucos assinam hoje o nome. À mão amoldou-se de tal maneira ao cabo da enxada, foi tanta a negrura e a fome que os rodeou, que esqueceram de todo que havia letras e pensamento.
Mogadouro, Montezinho, Nogueira, Bornes, Padrela… (Ainda me lembro…)
Por que razão não hão-de continuar estes homenzinhos pelo mundo fora a sua maravilhosa descoberta?
Nevada, Pirenéus, Alpes, Urais, Tibet…
Era só mais um esforçozinho de memória e de liberdade… Atravessava-se a fronteira do mapa, uma simples linha negra, afinal, e começava a aventura...
E doeu-me só eu ter tido coragem de abrir os olhos contra quem mos queria mergulhados em terra de servidão.
Miguel Torga, Diário (III), p. 187
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