sábado, 1 de junho de 2013

A voar para Moçambique, 1 de Junho de 1973

A voar para Moçambique, 1 de Junho de 1973 – Tenho de me render à evidência: o homem que voa dimensiona o mundo de outra maneira. Que perspectiva poderia eu levar da imensidão africana, a calcorreá-la a passo de caranguejo? A vida inteira não chegaria para traçar nela meia dúzia de coordenadas. Assim, de um só relance, abranjo a infinita grandeza deste corpo febril e sonolento, ao mesmo tempo despido e inviolado. Corpo onde altas serras e cordilheiras infindáveis são rugas insignificantes, e rios intermináveis e caudalosos parecem veias exangues. Até o absurdo de eu o espreitar de mil metros de altura, comodamente instalado numa cadeira e a respirar ar condicionado, torna mais significativa a minha observação. Vou comparando duas realidades: aquela a que pertenço, já quase angélica de tão abstracta, e a que leveda lá em baixo, ao rés-do-chão, concreta, terrosa, ainda larvar. A distância que vai da Lusaka, que neste preciso momento espreito pelo postigo, à Florença que me acode ao bico da pena! Que esforço terá de fazer o negro para chegar ao palácio da Senhoria, e que desnudamento é necessário a um europeu para regressar, mesmo em imaginação, à primitiva decência de uma cubata! 
Miguel Torga 

Sem comentários:

Enviar um comentário