Nós não
quisemos ser cúmplices na indiferença universal. E aqui começamos, serenamente,
sem injustiça e sem cólera, a apontar dia por dia o que poderíamos chamar – o
progresso da decadência. Devíamos fazê-lo com a indignação dramática de panfletários?
Com a serenidade experimental de críticos? Com a jovialidade fina de
humoristas?
Não é verdade,
leitor de bom senso, que humoristicamente o deveríamos fazer? Porque, bem vês,
esta decadência está endurecida: a dissolução tornou-se um hábito, quase um
bem-estar, para muitos uma indústria. Parlamentos, ministros, eclesiásticos,
políticos, exploradores, estão de pedra e cal na corrupção. O áspero Veillot [1]
não bastaria; Proudhon [2]
ou Vacherot [3],
seriam insuficientes.
Contra esta
organização oficial é necessário ressuscitar as gargalhadas históricas de Manuel
Mendes Enxúndia [4].
Que uma vez se
ponha a galhofa ao serviço da justiça!
Achas
imprudente? Achas inútil? Achas irrespeitoso? Preferias que fizéssemos um
jornal político, inteiro, com todas as suas inépcias, todas as suas calúnias,
vasto logradouro de ideias triviais que desmaiam de fadiga entre as mãos dos
tipógrafos?
Não.
Fundaríamos antes um depósito de bichas de sangrar ou uma casa de banhos
quentes. E se nos tiranizasse excessivamente o astuto demónio da prosa, então,
em honrada companhia do sr. Fernandez de los Rios [5],
ajoujados aos líricos de Barcelona, cantaríamos, voltados para os lados da
Palestina, a pátria, a fé e o amor! E patentearíamos aquela crença vívida, aquele entusiasmo
altivo, aquele arranque peninsular,
com que outrora se pelejou a batalha de
Aljubarrota e hoje se fazem caixinhas de obreias [6]!
Aqui estamos pois
diante de ti, mundo oficial, constitucional, burguês, proprietário, doutrinário
e grave!
Não sabemos se
a mão que vamos abrir está ou não cheia de verdades. Sabemos que está cheia de
negativas.
Não sabemos,
talvez, onde se deva ir; sabemos decerto, onde se não deve estar.
Catão [7],
com Pompeu e com César à vista,
sabia de quem havia de fugir, mas não sabia para onde. Temos esta meia ciência
de Catão.
Donde vimos?
Para onde vamos? – Podemos apenas responder:
Vimos donde vós
estais, vamos para onde vós não estiverdes.
[1] Provavelmente, Louis Veuillot [Veuillot, Louis (l812-1833) – Escritor católico francês defensor do ultramontanismo e redactor do jornal conservador Univers.].
[2]
Proudhon, Pierre-Joseph (1809-1865)
– Economista e sociólogo francês que, com a publicação da sua primeira obra O Que É a Propriedade? (1840),
conquistou a celebridade, tendo exercido uma enorme influência nos meios tanto
intelectual como operário. As suas teorias não punham em causa o direito à
propriedade, como as de outros autores contemporâneos, mas defendiam que ela devia
ser colectiva. No plano económico e social, defendia o mutualismo e, no
político, o federalismo. Crítico feroz de Fourier, Louis Blanc e Karl Marx,
atacou com violência o comunismo, que designou por «absurdo antidiluviano». O
seu livro A Filosofia da Miséria
(l846) provocou uma violenta resposta de Marx na obra A Miséria da Filosofia (1847). É muito citado ao longo dos volumes
de As Farpas.
[3]
Vacherot, Étienne (1809-1897) –
Filósofo francês que sucedeu a Victor Cousin como professor na Sorbonne (1819).
A sua teoria de que Deus era um mero ideal do espírito humano valeu-lhe o afastamento
da cátedra. Eleito deputado da Assembleia Nacional em 1871, sentou-se à
esquerda do hemiciclo.
[4]
V. João da Soledade Morais [Morais, João
da Soledade (?-1871) – Cónego regrante de Santo Agostinho colaborador do
periódico satírico Braz Tisana. Usava
o pseudónimo de Manuel Mendes Enxúndia.].
[5]
Fernandez de los Rios, Angel
(1821-1880) – Político e escritor espanhol que o general Prim enviou a
Portugal, em 1869, para convidar Fernando II de Portugal, viúvo de D. Maria II,
a ocupar o trono espanhol, deixado vago depois da forçada abdicação de Isabel
II (1868), missão que não conseguiu levar a bom termo. Foi, durante um curto
período, ministro de Espanha em Portugal.
[6]
Obreias, caixinha de – Caixinha de
esmolas
[7]
Catão, Pompeu e César, três figuras da história romana. Neste passo, a citação
de Catão só se poderia referir a Catão, o Jovem
(93-46 a. C.), contemporâneo desses dois generais, mas cuja posição histórica
não se insere no contexto aqui desenhado. Pensamos que seja um engano de nomes,
querendo o autor referir-se a Cícero (106-43 a. C.), um dos maiores
representantes da literatura latina, esse sim partidário primeiro de Pompeu
(106-48 a. C.) e depois de César (102-44 a. C.). Após o assassinato deste último,
Cícero foi, por sua vez,
assassinado pelos soldados de Marco António (82-30
a. C.) quando intentava a fuga.
Sem comentários:
Enviar um comentário