segunda-feira, 10 de junho de 2013

As Farpas – Maio de 1871 (7-9)

Nós não quisemos ser cúmplices na indiferença universal. E aqui começamos, serenamente, sem injustiça e sem cólera, a apontar dia por dia o que poderíamos chamar – o progresso da decadência. Devíamos fazê-lo com a indignação dramática de panfletários? Com a serenidade experimental de críticos? Com a jovialidade fina de humoristas?
Não é verdade, leitor de bom senso, que humoristicamente o deveríamos fazer? Porque, bem vês, esta decadência está endurecida: a dissolução tornou-se um hábito, quase um bem-estar, para muitos uma indústria. Parlamentos, ministros, eclesiásticos, políticos, exploradores, estão de pedra e cal na corrupção. O áspero Veillot [1] não bastaria; Proudhon [2] ou Vacherot [3], seriam insuficientes.
Contra esta organização oficial é necessário ressuscitar as gargalhadas históricas de Manuel Mendes Enxúndia [4].
Que uma vez se ponha a galhofa ao serviço da justiça!

Achas imprudente? Achas inútil? Achas irrespeitoso? Preferias que fizéssemos um jornal político, inteiro, com todas as suas inépcias, todas as suas calúnias, vasto logradouro de ideias triviais que desmaiam de fadiga entre as mãos dos tipógrafos?
Não. Fundaríamos antes um depósito de bichas de sangrar ou uma casa de banhos quentes. E se nos tiranizasse excessivamente o astuto demónio da prosa, então, em honrada companhia do sr. Fernandez de los Rios [5], ajoujados aos líricos de Barcelona, cantaríamos, voltados para os lados da Palestina, a pátria, a e o amor! E patentearíamos aquela crença vívida, aquele entusiasmo altivo, aquele arranque peninsular, com que outrora se pelejou a batalha de Aljubarrota e hoje se fazem caixinhas de obreias [6]!

Aqui estamos pois diante de ti, mundo oficial, constitucional, burguês, proprietário, doutrinário e grave!
Não sabemos se a mão que vamos abrir está ou não cheia de verdades. Sabemos que está cheia de negativas.
Não sabemos, talvez, onde se deva ir; sabemos decerto, onde se não deve estar.
Catão [7], com Pompeu e com César à vista, sabia de quem havia de fugir, mas não sabia para onde. Temos esta meia ciência de Catão.
Donde vimos? Para onde vamos? – Podemos apenas responder:
Vimos donde vós estais, vamos para onde vós não estiverdes.


[1] Provavelmente, Louis Veuillot [Veuillot, Louis (l812-1833) – Escritor católico francês defensor do ultramontanismo e redactor do jornal conservador Univers.].
[2] Proudhon, Pierre-Joseph (1809-1865) – Economista e sociólogo francês que, com a publicação da sua primeira obra O Que É a Propriedade? (1840), conquistou a celebridade, tendo exercido uma enorme influência nos meios tanto intelectual como operário. As suas teorias não punham em causa o direito à propriedade, como as de outros autores contemporâneos, mas defendiam que ela devia ser colectiva. No plano económico e social, defendia o mutualismo e, no político, o federalismo. Crítico feroz de Fourier, Louis Blanc e Karl Marx, atacou com violência o comunismo, que designou por «absurdo antidiluviano». O seu livro A Filosofia da Miséria (l846) provocou uma violenta resposta de Marx na obra A Miséria da Filosofia (1847). É muito citado ao longo dos volumes de As Farpas.
[3] Vacherot, Étienne (1809-1897) – Filósofo francês que sucedeu a Victor Cousin como professor na Sorbonne (1819). A sua teoria de que Deus era um mero ideal do espírito humano valeu-lhe o afastamento da cátedra. Eleito deputado da Assembleia Nacional em 1871, sentou-se à esquerda do hemiciclo.
[4] V. João da Soledade Morais [Morais, João da Soledade (?-1871) – Cónego regrante de Santo Agostinho colaborador do periódico satírico Braz Tisana. Usava o pseudónimo de Manuel Mendes Enxúndia.].
[5] Fernandez de los Rios, Angel (1821-1880) – Político e escritor espanhol que o general Prim enviou a Portugal, em 1869, para convidar Fernando II de Portugal, viúvo de D. Maria II, a ocupar o trono espanhol, deixado vago depois da forçada abdicação de Isabel II (1868), missão que não conseguiu levar a bom termo. Foi, durante um curto período, ministro de Espanha em Portugal.
[6] Obreias, caixinha de – Caixinha de esmolas
[7] Catão, Pompeu e César, três figuras da história romana. Neste passo, a citação de Catão só se poderia referir a Catão, o Jovem (93-46 a. C.), contemporâneo desses dois generais, mas cuja posição histórica não se insere no contexto aqui desenhado. Pensamos que seja um engano de nomes, querendo o autor referir-se a Cícero (106-43 a. C.), um dos maiores representantes da literatura latina, esse sim partidário primeiro de Pompeu (106-48 a. C.) e depois de César (102-44 a. C.). Após o assassinato deste último, Cícero foi, por sua vez, assassinado pelos soldados de Marco António (82-30 a. C.) quando intentava a fuga. 

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