Bruxelas, 6 de Junho de 1977 – Palavras
que vim hoje aqui dizer.
Minhas Senhoras e meus Senhores:
A poesia está
de festa. Não porque a vemos neste momento celebrada na pessoa de um poeta
qualquer, mas porque uma das tonalidades da sua voz foi finalmente ouvida e
reconhecida num conclave onde até hoje nenhum Espírito Santo a
fizera descer. É o português uma velhíssima e nobre língua latina espalhada
pelos cinco continentes. Nela cantaram e cantam grandes vultos inspirados, de Camões a Fernando Pessoa, de Bernardim Ribeiro a Teixeira de Pascoaes.
Capaz de dar guarida às mais desabusadas fúrias épicas e às mais discretas
confidências líricas, dúctil e colorida em todos os paralelos geográficos que
nas suas andanças visitou, poucas a igualam nos fecundos dons proteicos, na sua
barroca plasticidade. Mas a Europa
culta conhece-a mal, e a lira temperada nos confins ibéricos «onde a terra se
acaba e o mar começa»), embora com todas as cordas a vibrar de extremo ocidente
a extremo oriente, tem sofrido, séculos a fio, a injusta condenação de se ver
privada de participar no polif6nico coro das nações, e de emprestar à
orquestração universal o inesperado concurso de uma vivida e natural simpatia
cósmica. Felizmente que o encanto se quebrou por obra e graça do vosso
arbítrio. Seja essa a precária virtude dos meus versos: contribuir, na sua
exacta medida, para que a singularidade expressiva de um povo, simultaneamente
loquaz e sucinto, urdidor de romanceiros e sintetizador de rifões, possa de ora
avante patentear à curiosidade cosmopolita toda a sua riqueza e originalidade.
É mais um benefício que ficamos a dever às bienais de Knocke e ao seu
clarividente fundador. Arredondar o mundo da poesia – como Fernão de
Magalhães, um lusitano sem fronteiras, fez ao mundo físico –, é dar-lhe a
total dimensão que ele deve ter na mais dilatada aspiração da sensibilidade
humana.
Hora de
regozijo, pois, para todos nós, servidores de Orfeu. Mas hora igualmente
amarga, se a meditarmos a outra luz menos apaixonada. Se a projectarmos para
além desta grata circunstância concreta em que às letras da minha pátria toca o
maior quinhão. Fora de tais limites, já o vinho com que nos brindamos tem menos
doçura. A negra realidade do que é sobrepõe-se à clara irrealidade do que
parece, e um pertinaz mal-estar esmaece a passageira euforia do nosso mútuo
encontro.
Bem sabemos que
no longo caminho da História muitas vezes a poesia foi coroada de rosas. Na
Grécia de Péricles, na
Roma de Augusto, nas cortes
provençais, na Florença
dos Médicis, assim
sucedeu. Mas coroada pela tácita confluência de uma admiração espontânea e
generalizada, e não pelo expresso voto dos seus obreiros, feitos advogados em
causa própria, como é o nosso caso. Uma assembleia de poetas a premiar um dos
seus pares não significará que a poesia, longe de se mirar no límpido espelho
da sua glória, se vai esquivando da melhor maneira que pode ao doloroso
reconhecimento da sua imagem diminuída? Não serão tão fraternos galardões
partilhados, mais que expansivas manifestações de efectivo alento, agoirentos sinais
de retractivo desalento? Por muito que nos doa, tais simulacros de sucesso,
permutados em circuito fechado, disfarçam mal a evidência de uma crise de
identidade que nenhuma retórica consegue exorcizar.
Já lá vão anos,
numa mensagem enviada a um congresso de poetas, realizado perto da Via Ápia, aludi às
catacumbas de resistência onde a poesia, num reflexo de integridade ofendida,
teria de se recolher para preservar o seu milagre sempre renovado de criação.
Gritava então do fundo de um poço de angústia, na incerteza de encontrar ressonância
nos meus companheiros na crença e na desgraça. Era no apogeu das triunfantes
ideologias de massas em que ser poeta inconformado valia por um atestado civil
de maldição. A presença de qualquer de nós no seio da sociedade, correspondia,
no critério das ditaduras vigentes, à presença aberrante de um tumor maligno
nas entranhas de um corpo homogéneo. E enchíamos os cárceres como os demais
cidadãos que se sabiam e queriam diferentes e livres. Mas essa violência estava
na lógica das coisas. Ao mesmo tempo incómoda e sedutora, a poesia foi sempre
um pesadelo e uma fascinação para os poderosos. Em todas as épocas os césares
pretenderam simplesmente aniquilá-la ou, mais argutamente, utilizá-la, até ao
ponto de usurpar-lhe os méritos. Confusamente conscientes de que para cada
verso existe um eco, que o verbo se faz carne em cada poema, que onde esteja um
poeta e haja quem saiba ouvi-lo se gera uma corrente de comunicação a partir da
qual já nenhuma inquietação se deixa iludir de boa fé, nada mais natural de que
o desejo de mobilizar essa força em proveito próprio, arremedando-lhe os processos
encantatórios ou prestigiando os vates oficiais, promovidos a príncipes da
rima. E foi, não a pensar neles, nesses olímpicos rojados aos pés do poder, mas
de olhos postos no heroísmo de António Machado e no
martírio de Lorca,
meus vizinhos e contemporâneos, que toquei a reunir. Mal imaginava eu que não
tardaria muito estaríamos diante de nova calamidade: a praga mefítica do poeta
refugiado nas suas qualidades menores, a cantar de ouvido hinos que deveriam
irromper das funduras da alma, a iludir o que não quer revelar, ou a encobrir
com palavras de superfície a debilidade do estro. Furtando-se à tutela dos
totalitarismos expressos, mas envergonhada da sua condição e a render-se com
armas e bagagens a padrões que nem pelo facto de serem mais subtis deixam de
ser menos tirânicos, não deslizará irremediavelmente a poesia para os abismos
de um totalitarismo implícito? Solidário mas autónomo, o poeta é um rebelde que
sabe que a poesia apenas subverte porque transfigura, e que será esse sempre o
seu vanguardismo. A cantar ao sabor da moda, um poeta vestido de bardo não é
menos trágico do que um poeta ataviado de fâmulo.
É nesta
encruzilhada de perguntas e dúvidas que radicam as minhas apreensões, agravadas
dia a dia perante a evidência do isolamento progressivo em que no íntimo
vivemos todos. Os que resistiram à tentação e os que se deixaram tentar. Os que
persistem em ser descomprometidos apóstolos da liberdade; os que cederam à
comodidade de pôr a poesia ao serviço de causas que lhe são alheias; e ainda os
que, perplexos, à míngua de um ponto de aplicação, a escamoteiam em jogos
herméticos e ambíguos, onde ela se perde como a melhor água numa esponja de
areia. Uns por razões de fora, outros por razões de dentro, outros por
incidência de ambas, todos vivemos exilados dentro de nós, mesmo quando assim
conviventes, a repartir irmamente, num acto compensatório, os louros sagrados
do Parnaso. Porque não
vale a pena encobrir a verdade. Temos de o confessar lealmente: embora tais
festões constituam um mútuo estímulo e um lenitivo, murcha-lhes o viço não sei
que sombra de solidão. Talvez a certeza melancólica de que apenas nos dariam
inteira alegria na hora em que conseguíssemos merecê-los e recebê-los das mãos
rendidas e limpas daqueles que connosco comungassem na convicção de que o
poeta, na transparência da poesia, só não trai o semelhante quando não se trai
a si próprio.
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