sábado, 8 de junho de 2013

7 e 8 de Junho de 1978

FANTASIA. E nisto, numa vasta clareira aberta na procissão, entre alas de povo, surgiu el-rei, de manto de veludo carmesim pelos ombros, ornado a arminhos, debaixo do pálio sustido por invisíveis personagens, andando com solene e majestoso vagar, e levando, sobre uma almofada de seda bordada e com borlas de oiro, a sua própria cabeça – acabada de decepar como a de São João Baptista.
De onde nos virá esta propensão a amar os estranhos, quando – irmãos! – nos amamos tão pouco, ou nos odiamos entranhadamente uns aos outros?!
«Estes que hoje me falam com tamanho fervor e convicção do Futuro, como eu gostaria de viver quarenta ou cinquenta anos mais, só para os ouvir lembrar com nostalgia o hoje que então será Passado!»
Deixar lá falar ou escrever os tolos que nada ainda criaram de durável que valha a pena, comem ou vivem à custa do que os outros criam, e ainda por cima levam o tempo a elogiar-se ou a agatanhar-se mutuamente, com a raiva dos impotentes!
Não há problemas morais ou, mais propriamente, de consciência, na nossa tão pobre literatura de ficção. Camilo? Dinis? O Eça, todo ele cinismo? Brandão, nostalgia e visão funambulesca? Castro? Aquilino, grande na fase rústica e realista? Onde? Talvez em algum recanto de Herculano?... E sabes tu porquê? Porque nunca houve entre nós os problemas de consciência que o protestantismo e, em especial, o puritanismo, com a meditação da Bíblia e o individualismo, criaram na mente dos seus adeptos. Dos Russos, gente de extremos no pecado e no arrependimento, nem falar. Os Franceses tiveram, além do jansenismo (e Pascal!), um Montaigne e, além de outros modernos, um Gide. Até na mais desbocada erótica norte-americana abundam os problemas de ordem ética. Basta lembrar um Tennessee Williams, génio e pecado em alta escala! Nós nunca fomos religiosos na acepção moral e psicológica do termo: fomos formais, obedientes. Da nossa carência de verdadeira Fé, mesmo no catolicismo levado ao fanatismo, resultou a nossa total aversão à análise e aos embates de consciência nas personagens de romance. Se alguma coisa tens lido, ou vieres a ler, medita nisto.

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