quinta-feira, 6 de junho de 2013

6 – Junho (quarta). [1990]

Fui levar uma carga de livros ao correio da Avenida de Roma. Era a segunda dose de ofertas do romance que (quase) todos os conhecidos, com uma fracção mínima, de relacionamento, se julgam no direito de receber. E com dedicatória, que é o mais detestável da operação. E com um mínimo de prosa especial, fora do formulário convencional, para que a oferta seja especialmente confeccionada para o receptor da dádiva. E tudo isto com molho de pragas e injúrias ao meu destino de «escritor». Mas enfim, lá fui com o carrego aos correios. E como ficam perto da Barata e da Bertrand, entrei cheio de proa na alma, já que no corpo ouço os rangidos dos ossos. E isto porque levava a basófia de pôr a hipótese de que o meu livro se tinha vendido aos montes como a insensatez. Aos montes, sim, estavam eram os exemplares à espera. Então isto não anda? perguntei a um funcionário. Torceu-me o nariz com desânimo e mau agoiro. Fiquei sucumbido. Pois então o nosso luso alfabeto não petiscou ainda o livro, que até é, palavra de honra, uma obra da altura? Mas era assim. O Barata tem expostos os «best-sellers» que vão do número um ao vinte, suponho. O meu, muito encolhido, lá estava cheio de vergonha no 12. Valerá a pena ser escritor em vida neste país, quando se não é Paço d’Arcos ou Lobo Antunes? Não valerá mais a pena sê-lo só depois de morto? Vou decidir-me a isso. Vou ser aplicado e produtivo só depois de esticado na cova. Mas sabeis uma coisa, ó patifórios que esfregais as mãos de contentes? A França está a descobrir-me. E pergunta surpresa como é que Aparição lá chegou tão tarde. E diz que é uma «obra-prima». E reeditou Alegria Breve. E. Mas calo-me porque a minha modéstia me trava a língua. É o que vos vale para não vos dizer tudo. E nem imaginais o que teríeis de ouvir. Sa(ca)nitas de caca.
E já agora para chatear os sacanóides, registo que a tradução alemã do Até ao Fim está a ter uma imprensa bonita. E a Aparição em França continua a dar no goto. Há dias um crítico chamava-lhe um très grand livre. E hoje outro chama-lhe chef-d’œuvre. Assim. Ah, esquecia-me. Saiu a 2.ª edição da tradução francesa de Alegria Breve. Saiu a tradução de Manhã Submersa (Matin perdu), já vi um terço das folhas da tradução de Até ao Fim. Uma pequena laranja azeda: o Pour toujours já não entra na colecção 10/18 em Setembro, mas em Janeiro do próximo ano. Tão longe.
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De vez em quando aparece um gracioso a largar piadas e tem logo um sucesso garantido. Porque é que o riso seduz tanto? Bom. Antes de mais há que ver que nem todos têm o dente pronto para a exibição. Mesmo os que o têm apto e exibível. São os que têm o espírito severo, vacinado no eterno contra os macacos do gracejo. Mas há os outros, massa imensa sempre pronta à gargalhada chalaceira, logo que alguém lhes faça cócegas no umbigo. Esquecia-me: os de espírito grave, nascidos para a fundura das coisas, concedem às vezes um sorriso a meio dente por tolerância e sociabilidade. Normalmente sorriem de coisas parvas que quando era rapaz me deixavam parvo a mim por não ver onde é que estava a piada. Mas voltando ao princípio: porque é que o riso agrada tanto quando, é claro, se está disponível? Em primeiro lugar agrada porque ele se fabrica no disponível? Em primeiro lugar agrada porque ele se fabrica no dizer mal e dizer mal dá-nos uma alegria imensa por sermos nós geniais e os outros uns imbecis. Ora é de uma justiça elementar que os imbecis apanhem. Tanto mais que às vezes são imbecis e é de todo o ponto que o sejam para todo o brilho ser nosso. Por outro lado acontece que nós próprios, não sendo destituídos desse dom de obter efeito na coçagem do umbigo alheio, podemos não ser reconhecidos na eficiência da chalaça ou simplesmente metermo-nos nas encolhas por decoro. Porque é evidente que tendo nós conquistado uma imagem pública de seriedade, não vamos comprometê-la a fazer palhaçadas. Para isso lá estão os palhaços profissionais a tanto a chalaça quadrada. Finalmente o riso seduz-nos porque a vida, como distracção e pagode, é uma merda. O inconveniente de tudo isto é que o chalaceiro profissional não tem a infinitude de Deus e postas a uso meia dúzia de piadas que trazia no fígado, esgota-se e torna-se insuportável como o cheiro a chulé de quem não muda de peúgas.
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Como me é incómodo ler histórias estudantis sobre Coimbra. Porque é raríssimo que essas histórias passem. Coimbra é do imaginário e só assim depois de morrer ela nasce. Há portanto que recriá-la no irreal que é o seu. É um irreal que pode torná-la compreensível, ou seja recuperável até mesmo para os que a viveram e lhe conhecem o seu real. Mas o que normalmente acontece é que os que a viveram a traduzem ou rememoram não no seu passado que é de nunca, mas no real que é só do seu tempo. É o que pode talvez ser eficaz entre as confraternizações e nos copos que a aquecem – mas não na transposição à escrita, que se deve desenvolver num outro plano. O que é preciso é fingi-la, como recomenda o poeta, e não descrevê-la na sua pretensa realidade. Eis porque falar de Coimbra é quase sempre detestável. A sua realidade, aliás, é em tal caso quase sempre convencional, estereotipada já no que outros lhe inventaram ou terão mesmo vivido nela. São histórias picarescas de boémia fictícia, rapinanço de galinhas que já nem têm capoeira, assaltos ao peru do bispo que piedosamente o oferece com uma compreensão eclesiástica da folia estudantil, lances estafados de praxes avoengas e o mais assim. Mesmo a transposição de tudo isso para uma pretensa universalidade que isso consinta ou aceite, é largamente problemática pela ingenuidade e provincianismo que isso sustenta. Ora o que mais fala a uma memória de curto alcance é o que se refere a um imediatismo confrangedor que é recompensado, quando muito, por um sorriso discreto e tolerante. Mas Coimbra tem um repositório mais variado para quem nela viveu. Pelo que se me refere, o seu limite para uma possível evocação é o que ressoa no timbre do seu nome, que é o de uma guitarra. Mas a ignorância disso continua a ingenuidade nas letras dos fados ou baladas, como prefiro chamar-lhes e que são normalmente detestáveis – desde a «capa velhinha» (com cinco anos…) às mágoas e prantos despejados no Mondego. Há no entanto a música dolente e longínqua e terrivelmente evocadora do nunca mais de uma juventude perdida, e isso é bastante para Coimbra existir em quem nela existiu. Não foi o ter lá existido que existe agora na sua evocação – o que existe na Coimbra legendária é o seu impossível, a eternidade da memória, o imóvel desse passado que é a transcendência do passado real que nunca existiu. É o que explica o logro de quem aí volta, à procura dessa irrealidade. É o que explica a estranha revelação desse logro por mim sentido e decerto por outros, quando a chegada à cidade nos dá logo, por revelado imediata, o que dela ainda não vimos e é quase como se imediatamente já tivéssemos visto e nos desencoraja o entusiasmo para a irmos rever. Lembro-me de uma amiga que da última vez que aí fui quis ser amável e me levou ao Penedo. E eu não quis estragar-lhe a amabilidade e fui. E houve logo a inquietante sensação de que não havia lá nada do que eu procurava. Como não houve de outra vez quando fui à rua do Loureiro, onde morei (e o Eça, um pouco mais para baixo da minha casa), porque a rua era só o que eu já tinha em mim quando lá fui e nada ou pouco tinha a ver com o seu ar velho e sombrio. Aliás, só então reparei em duas igrejas renascentistas que eu nunca vira das inúmeras vezes que por elas passei. Como suponho já ter dito não sei onde.

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