domingo, 2 de junho de 2013

Beira, 2 de Junho de 1973

Beira, 2 de Junho de 1973 – Pareço um profeta sem barbas, a vaticinar desgraças nas cartas que escrevo, nas notas que rascunho, nas conversas que vou tendo. Mas que hei-de eu fazer, se desde que pus o pé em África vivo em pânico, sinto a terra fugir-me debaixo dos pés? Em Angola, há dias, numa fazenda, eu a cuidar que pousava numa casa de paz, e tinha por cima da sala, onde estava a ser obsequiado, um falso de cimento transformado em paiol bélico, com metralhadora e tudo. Aqui, os meus interlocutores, igualmente gentis, sentados às mesas recheadas de marisco, rebatem as minhas apreensões com carabinas e balas.

E perco a esperança. Não vinha fia ilusão de encontrar generalizado nestas paragens um espírito de missão. Mas também não contava que ele estivesse tão ausente das consciências, que a angústia que me oprime fosse mais pelo que falta do que pelo que existe. Mais pelo que falta de um generoso projecto colectivo do que pelo que existe ao abrigo de um jogo de egoísmos mesquinhos mal articulados. Os massacres que desencadearam esta guerra, em vez de terem sido ocasião de auto-crítica, transformaram-se para a maioria dos colonos em motivo suplementar de repressão. É na precária barcaça de um oportunismo grosseiro que todos navegam. E não há porto de salvamento para aqueles que asfixiam na boa consciência do presente os remorsos do futuro. 

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