Têm alma os verdugos?
Nestes últimos dias abriu o tiro ao alvo contra o juiz Garzón. Mesmo aqueles que o defendem argumentam que tem uma personalidade controversa, como se todos tivéssemos a obrigação de ser iguais ao semelhante mais próximo… O caso é que Garzón, com os seus autos singulares, é o juiz que mais alegrias tem proporcionado àqueles a quem, apesar de tudo, esperam muito da justiça ou, melhor dito, dos encarregados de administrá-la. Garzón, na sequência de queixas que lhe apresentaram, interveio num assunto que é maior que ele e que todas as instituições judiciais juntas: a guerra civil espanhola, a ilegalidade do franquismo, a dignidade dos que defenderam a República e um modo de viver a vida. Ele sabe que talvez tenha de abandonar o campo, mas as portas já estão abertas para que se reconheçam verdades, junto a identificações, e inclusive, por fim, enterros. A transição espanhola, uma época vivida sobre o possível, não é uma carta de corso: a esquerda cedeu porque os militares e o franquismo social estavam apontando, mas não se rendeu, não disse «esta palavra é definitiva», simplesmente esperou que chegasse o dia de contar os seus mortos e chamar as coisas pelo seu nome. Garzón ajudou com a sua posição, e nunca alegria maior foi sentida pelas vítimas daquela guerra, pelos que conseguiram sobreviver até hoje.
O juiz Garzón não é um sectário. Entende que nada humano lhe é alheio e entra nos assuntos que considera delitivos e porque para isso tem autoridade. Também se pergunta se os verdugos têm alma, sinal mais do que suficiente para compreender que analisa desde as duas margens. Há uns meses pediu-me um prólogo para um trabalho que havia realizado com o jornalista Vicente Romero. Era, repito, uma investigação sobre o comportamento dos verdugos. Recomendo vivamente a leitura deste livro – El alma de los verdugos, ed. RBA – e, enquanto não o têm nas vossas mãos, deixo-vos estas linhas que, à maneira de prólogo, escrevi para Baltasar Garzón e Vicente Romero.
Têm alma os verdugos?
Uma alma que fosse possível considerar responsável por todo e qualquer acto cometido teria de levar-nos, forçosamente, a reconhecer a total inocência do corpo, reduzido a ser o instrumento passivo de uma vontade, de um querer, de um desejar não especificamente localizáveis nesse mesmo corpo. A mão, em estado de repouso, com os seus ossos, nervos e tendões, está pronta para cumprir no instante seguinte a ordem que lhe for dada e de que em si mesma não é responsável, seja para oferecer uma flor ou para apagar um cigarro na pele de alguém. Por outro lado, atribuir, a priori, a responsabilidade de todas as nossas acções a uma identidade imaterial, a alma, que, através da consciência, seria, ao mesmo tempo, juiz dessas acções, conduzir-nos-ia a um círculo vicioso em que a sentença final teria de ser a inimputabilidade. Sim, admitamos que a alma é responsável, porém, onde é que está a alma para que possamos pôr-lhe as algemas e levá-la ao tribunal? Sim, está demonstrado que o martelo que destroçou o crânio desta pessoa foi manejado por esta mão, contudo, se a mão que matou fosse a mesma que, tão inconsciente de uma coisa como da outra, tivesse simplesmente oferecido uma flor, como poderíamos incriminá-la? A flor absolve o martelo?
Ficou dito acima que a vontade, o querer, o desejar (sinónimos que, apesar de o não serem efectivamente, não podem viver separados) não são especificamente localizáveis no corpo. É certo. Ninguém pode afirmar, por exemplo, que a vontade esteja alojada entre os dedos médio e indicador de uma mão neste momento ocupada a estrangular alguém com a ajuda da sua colega do lado esquerdo. No entanto, todos intuímos que se a vontade tem casa própria, e deverá tê-la, ela só poderá ser o cérebro, esse complexo universo cujo funcionamento, em grande parte (o córtex cerebral tem cerca de cinco milímetros de espessura e contém 70 000 milhões de células nervosas dispostas em seis camadas ligadas entre si) se encontra ainda por estudar. Somos o cérebro que em cada momento tivermos, e esta é a única verdade essencial que podemos enunciar sobre nós próprios. Que é, então, a vontade? É algo material? Não concebo, não o concebe ninguém, com que espécie de argumentos seria defensável uma alegada materialidade da vontade sem a apresentação de uma «amostra material» dessa mesma materialidade…
O voluntarismo, como é geralmente conhecido, é a teoria que sustenta que a vontade é o fundamento do ser, o princípio da acção ou, também, a função essencial da vida animal. No aristotelismo e no estoicismo da antiguidade clássica observam-se já tendências voluntaristas. Na filosofia contemporânea são voluntaristas Schopenhauer (a vontade como essência do mundo, mais além da representação cognoscitiva) e Nietzsche (a vontade de poder como princípio da vida ascendente). Isto é sério e, por todas as evidências, necessitaria aqui alguém, não quem estas linhas está escrevendo, capaz de relacionar aquelas e outras reflexões filosóficas sobre a vontade com o conteúdo deste livro, cujo título é, não o esqueçamos, A Alma dos Verdugos. Aqui talvez tivesse eu de deter-me se, felizmente para os meus brios, não me tivesse saltado aos olhos, folheando com mão distraída um modesto dicionário, a seguinte definição: «Vontade: Capacidade de determinação para fazer ou não fazer algo. Nela se radica a liberdade». Como se vê, nada mais claro: pela vontade posso determinar-me a fazer ou não fazer algo, pela liberdade sou livre para determinar-me num sentido ou noutro. Habituados como estamos pela linguagem a considerar vontade e liberdade como conceitos em si mesmos positivos, apercebemo-nos de súbito, com um instintivo temor, que as cintilantes medalhas a que chamamos liberdade e vontade podem exibir do outro lado a sua absoluta e total negação. Foi usando da sua liberdade (por mais chocante que nos pareça a utilização da palavra neste contexto) que o general Videla viria a tornar-se, por vontade própria, insisto, por vontade própria, num dos mais detestáveis protagonistas da sangrenta e pelos vistos infinita história da tortura e do assassinato no mundo. Foi igualmente usando da sua vontade e da sua liberdade que os verdugos argentinos cometeram o seu infame trabalho. Quiseram fazê-lo e fizeram-no. Nenhum perdão é portanto possível. Nenhuma reconciliação nacional ou particular.
Importa pouco saber se têm alma. Aliás, desse assunto deverá estar informado, melhor do que ninguém, o sacerdote católico argentino Christian von Vernich que há alguns meses foi condenado a prisão perpétua por genocídio. Seis assassinatos, torturas a 34 pessoas e sequestro ilegal em 42 casos, eis a sua folha de serviços. É até possível, permita-se-me a trágica ironia, que tenha alguma vez dado a extrema unção a uma das suas vítimas…
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