terça-feira, 11 de outubro de 2011

BURROS E SUBSÍDIOS

Antigamente, cá pela nossa terra, burros era coisa de ciganos e cabaneiros. Lavrador que se prezasse, botava cavalo. Não obstante, havia por aí burros a dar com um pau.
Agora dizem que o burro está em vias de extinção. E os governantes, decerto receosos de que lhes falte matéria-prima para a governação, resolveram subsidiar os burros. Por amor ao subsídio, os lavradores deixaram-se de prosápias e desceram de cavalos a burros.
Mas aqui é que embica o meu entendimento. Se o burro está em vias de extinção, o mais lógico seria subsidiar as burras. Mas não. Todos os burros da minha aldeia são machos e, ainda por cima, capados.
Quem entende isto?
Qualquer dia ponho a questão ao ministro da agricultura.
Entretanto, como quem não tem burro anda a pé, é o que eu tenho feito.
Nas três primeiras semanas de Agosto, com os tórridos dias que iam reduzindo Portugal a cinzas, a calma não me permitia grandes passeios. Mas hoje, segunda-feira, dia 25, amanheceu com uma temperatura agradável e eu pude esticar um pouco mais as pernas. E dado que, nesta época do ano, os caminhos mais trilhados nos levantam nuvens de pó debaixo dos pés, cortei a direito por entre os campos.
Ia eu a atravessar uma leira de poisio por entre altos e barbaçudos milheirais híbridos, comecei a ouvir ao longe, por cima dos pios das calhandras e dos gorjeios dos estorninhos, golpes de machada solitária no silêncio do vale.
Aproximei-me.
Era o ti Gil, um dos tais lavradores que outrora tocava uma boa manada de vacas e hoje toca apenas um burro, a chapotar salgueiros.
– Eh, ti Gil? Como vão essas forças?
– Para os anos que tenho não há razão de queixa, graças a Deus.
Não sei quantos anos tem o ti Gil. O que posso dizer é que, quando eu era criança, já ele era adulto.
– Anda às estacas para os feijões?
O ti Gil riu-se. Na verdade, para estacar feijões, seria um pouco tarde. Depois explicou:
– Uns rascalhos para trancar o portal.
– Tem aqui um bonito lameira!
– Por acaso, aqui ao correr do cargo, já tem erva acamada.
– O que me admira é o burro aqui a retauçar na poula.
– Ai os burros não são como as vacas. Agarram-se mais depressa à restolha do que à ferrão.
– Por isso é que eles são burros, não lhe parece?
– Bem. Cada um come daquilo que gosta.
– Oh, ti Gil! Quantas vezes eu comi daquelas que não gostava...
– Por isso não saíste burro de todo.
– Obrigado e até logo. Deus o guarde a si e ao burro – disse eu em voz alta. E depois, no silêncio do meu peito: e a mim me não desampare, uma vez que «não saí burro de todo...»

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 179 e s.)

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