Coimbra, 9 de Outubro de 1979 – Creio que vinha penitenciar-se. É suficientemente lúcido para saber que há destinos que não podem ser traídos. O dele era desses. Mas a condição de poeta é dura. Se não implica o ascetismo no deserto da vida, exige pelo menos a renúncia a certos favores do mundo. Ora o meu visitante recebeu-os em abundância. Por isso, sente-se naturalmente de má consciência e na obrigação de se justificar perante alguém que, embora carregado de pecados, nunca foi infiel ao espírito a fingir que o servia. Só que nenhum arrependimento chega a tempo de evitar a culpa. Uma contrição sincera pode limpar uma alma mas não limpa uma vida. E o calor da minha compreensão de pouco ou nada valeu. Com absolvição ou sem ela, o penitente terá de passar o resto dos dias roído do remorso de ser um Orfeu sem versos.
Miguel Torga, DIÁRIO (XIII), 116
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