Gripe suína (2)
Continuemos.
No ano passado, uma comissão convocada pelo Pew
Research Center publicou um relatório sobre a «produção animal em granjas
industriais, onde se chamava a atenção para o grave perigo de que a contínua
circulação de vírus, característica das enormes varas ou rebanhos, aumentasse
as possibilidades de aparecimento de novos vírus por processos de mutação ou de
recombinação que poderiam gerar vírus mais eficientes na transmissão entre
humanos». A comissão alertou também para o facto de que o uso promíscuo de
antibióticos nas fábricas porcinas – mais barato que em ambientes humanos –
estava proporcionando o auge de infecções estafilocócicas resistentes, ao mesmo
tempo que as descargas residuais geravam manifestações de escherichia
coli e de pfiesteria (o
protozoário que matou milhares de peixes nos estuários da Carolina do Norte e
contagiou dezenas de pescadores).
Qualquer
melhoria na ecologia deste novo agente patogénico teria que enfrentar-se ao
monstruoso poder dos grandes conglomerados empresariais avícolas e ganadeiros,
como Smithfield Farms
(suíno e vacum) e Tyson (frangos). A
comissão falou de uma obstrução sistemática das suas investigações por parte
das grandes empresas, incluídas umas nada recatadas ameaças de suprimir o
financiamento dos investigadores que cooperaram com a comissão. Trata-se de uma
indústria muito globalizada e com influências políticas. Assim como o gigante
avícola Charoen
Pokphand, radicado em Bangkok,
foi capaz de desbaratar as investigações sobre o seu papel na propagação da
gripe aviária no Sudeste asiático, o mais provável é que a epidemiologia
forense do surto da gripe suína esbarre contra a pétrea muralha da indústria do
porco. Isso não quer dizer que não venha a encontrar-se nunca um dedo acusador:
já corre na imprensa mexicana o rumor de um epicentro da gripe situado numa
gigantesca filial de Smithfield no estado de Veracruz. Mas o mais
importante é o bosque, não as árvores: a fracassada estratégia antipandémica da
Organização
Mundial de Saúde, o progressivo deterioramento da saúde pública mundial, a
mordaça aplicada pelas grandes transnacionais farmacêuticas a medicamentos
vitais e a catástrofe planetária que é uma produção pecuária industralizada e
ecologicamente sem discernimento.
Como se
observa, os contágios são muito mais complicados que entrar um vírus presumivelmente
mortal nos pulmões de um cidadão apanhado na teia dos interesses materiais e da
falta de escrúpulos das grandes empresas. Tudo está contagiando tudo. A primeira
morte, há longo tempo, foi a da honradez. Mas poderá, realmente, pedir-se honradez
a uma transnacional? Quem nos acode?
José Saramago, O CADERNO
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