Exibicionismos
Palavras como
discrição, reserva, recato, pudor ou modéstia ainda se encontram em qualquer
dicionário. Temo, porém, que algumas delas venham a ter, mais cedo ou mais
tarde, o triste destino da palavra esgártulo, por exemplo, varrida, como
outras, do dicionário
da Academia por uma manifesta e pertinaz falta de uso que havia feito dela
um peso morto nas eruditas colunas. Eu próprio não me lembro de a ter dito
alguma vez e muito menos tê-la escrito. Já a palavra reserva, embora vá a
caminho de perder a acepção que me levou a incluí-la na lista acima, tem
garantida uma vida longa por aquilo da reserva de bilhete ou de lugar sem os
quais serviços fundamentais como os transportes aéreos simplesmente não
funcionariam. E isto sem esquecer outra reserva, a mental, inventada pelos
jesuítas como explicação última de terem dito primeiro uma coisa e feito depois
a contrária, operação, aliás, que vingou e prosperou ao ponto de acabar por se
difundir na sociedade humana como condição mesma de sobrevivência.
Não é minha
intenção moralizar, além de que se o fizesse perderia o meu tempo e suspeito
que alguns leitores. Bem sabemos que a carne é fraca e que ainda o é mais o espírito
por muito que se costume gabar das suas supostas fortalezas, que o ser humano é
o território por excelência de todas as tentações amáveis possíveis, tanto as
naturais como as que veio inventando em séculos e milénios de práticas
reiteradas. Bom proveito lhe faça. Que atire a primeira pedra quem nunca se deixou
tentar. A coisa começou por desapertar-se a roupa, por usá-la mais leve e
reduzida, também mais transparente, pondo à mostra um número cada vez maior de
centímetros quadrados de pele até se chegar ao nudismo integral cultivado com
franqueza absoluta em certas assinaladas praias. Nada de grave, porém. No
fundo, há em tudo isto, como já escrevi noutro contexto, uma certa inocência. Adão e Eva também
andavam nus e, contra o que a Bíblia
diz, sabiam-no perfeitamente.
Ao pôr em
funcionamento o vigente espectáculo universal que concentra e ao mesmo tempo
dispersa as atenções do mundo, não parece que hájamos previsto que iríamos dar
nascimento a uma sociedade de exibicionistas. A divisão entre actores e
espectadores acabou, o espectador vai para ver e ouvir, mas também para ser
visto e ouvido. O poder da televisão, por exemplo, alimenta-se em grande parte
desta simbiose malsã, mormente nos chamados reality shows,
onde o convidado, para isso pago e às vezes regiamente, vai pôr a descoberto as
misérias da sua vida, as traições e as vilezas, as canalhices próprias e
alheias, e, se necessário for ao espectáculo, as da família e dos seus
próximos. Sem discrição nem reserva, sem recato nem pudor, sem modéstia. Não
faltará quem diga que ainda bem que é assim, que devemos abandonar aquele
ferro-velho vocabular, portas abertas ainda que a casa cheire mal, alguns, não
duvidemos, irão mesmo ao extremo de afirmar que se trata de um benéfico efeito
da democracia. Dizer tudo, com a condição de que o essencial fique escondido.
Sem vergonha.
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