Da impossibilidade deste
retrato (1)
Este texto foi prólogo do catálogo de uma
exposição de retratos de Fernando
Pessoa na Fundação
Calouste Gulbenkian no princípio dos anos 80, creio que em 85. Por me parecer
que não viria fazer má figura neste blogue, aqui o trago.
Que retrato
de si mesmo pintaria Fernando Pessoa se, em vez de poeta, tivesse sido pintor,
e de retratos? Colocado de frente para o espelho, ou de meio perfil, obliquando
o olhar a três quartos, como quem, de si mesmo escondido, se espreita, que
rosto escolheria e por quanto tempo? O seu, diferente segundo as idades,
assemelhando a cada uma das fotografias que dele conhecemos, ou também o das
imagens não fixadas, sucessivas entre o nascimento e a morte, todas as tardes,
noites e manhãs, começando no Largo
de S. Carlos e acabando no Hospital
de S. Luís? O de um Álvaro de Campos,
engenheiro naval formado em Glasgow? O de Alberto Caeiro, sem
profissão nem educação, morto de tuberculose na flor da idade? O de Ricardo Reis, médico
expatriado de quem se perdeu o rasto, apesar de algumas notícias recentes
obviamente apócrifas? O de Bernardo Soares,
ajudante de guarda-livros na baixa lisboeta? Ou um outro qualquer, o Guedes, o
Mora, aqueles tantas vezes invocados, inúmeros, certos, prováveis e possíveis?
Representar-se-ia de chapéu na cabeça? De perna traçada? De cigarro apertado
entre os dedos? De óculos? De gabardina vestida ou sobre os ombros? Usaria um
disfarce, por exemplo, apagando o bigode e descobrindo a pele subjacente, de
súbito nua, de súbito fria? Cercar-se-ia de símbolos, de cifras da cabala, de
signos horoscópicos, de gaivotas no Tejo, de cais de pedra, de
corvos traduzidos do inglês, de cavalos azuis e jockeys amarelos,
de premonitórios túmulos? Ou, ao contrário destas eloquências, ficaria sentado
diante do cavalete, da tela branca, incapaz de levantar um braço para atacá-la
ou dela se defender, à espera de um outro pintor que ali fosse tentar o
impossível retrato? De quem? De qual?
De uma pessoa
que se chamou Fernando Pessoa começa a ter justificação o que de Camões já se
sabe. Dez mil figurações, desenhadas, pintadas, modeladas, esculpidas, acabaram
por tornar invisível Luís Vaz, o que dele ainda permanece é o que sobra: uma pálpebra
caída, uma barba, uma coroa de louros. É fácil de ver que Fernando Pessoa
também vai a caminho da invisibilidade, e, tendo em conta a ocorrente multiplicação
das suas imagens, provocada por apetites sobreexcitados de representação e
facilitadas por um domínio generalizado das técnicas, o homem dos heterónimos,
já voluntariamente confundido nas criaturas que produziu, entrará no negro
absoluto em muito menos tempo que o outro de uma cara só, mas de vozes também
não poucas. Acaso será esse, quem sabe, o perfeito destino dos poetas, perderem
a substância de um contorno, de um olhar gasto, de um vinco na pele, e
dissolverem-se no espaço, no tempo, sumidos entre as linhas do que conseguiram
escrever, se do rosto sem feições nem limites ainda alguma coisa vem
intrometer-se, está garantido o dia em que mesmo esse pouco será definitivamente
lançado fora. O poeta não será mais que memória fundida nas memórias, para que
um adolescente possa dizer-nos que tem em si todos os sonhos do mundo, como se
ter sonhos e declará-lo fosse primeira invenção sua. Há razões para pensar que
a língua é, toda ela, obra de poesia.
Sem comentários:
Enviar um comentário