Da impossibilidade deste
retrato (2)
Entretanto, o
pintor vai pintando o retrato de Fernando Pessoa. Está no princípio, não se
sabe ainda que rosto escolheu, o que se pode ver é uma levíssima pincelada de
verde, se calhar vai sair daqui um cão dessa cor para pôr em conjunção com um jockey amarelo e um cavalo azul, salvo
se o verde for apenas o resultado físico e químico de estar o jockey em cima do cavalo, como é sua
profissão e gosto. Mas a grande dúvida do pintor não tem que ver com as cores
que há-de empregar, essa dificuldade resolveram-na os impressionistas de uma
vez para sempre, só os homens antigos, os de antes, não sabiam que em cada cor
as cores estão todas: a grande dúvida do pintor é se há-de ter uma atitude
reverente ou irreverente, se pintará esta virgem como S. Lucas pintou a outra,
de joelhos, ou se tratará este homem como um triste coitado que realmente foi
ridículo a todas as criadas de hotel e escreveu cartas de amor ridículas, e se,
assim autorizado pelo próprio, poderá rir-se dele pintando-o. A pincelada
verde, por enquanto, é somente a perna do jockey
amarelo posta do lado de cá do cavalo azul. Enquanto o maestro não sacudir a
batuta, a música não romperá lânguida e triste, nem o homem da loja começará a
sorrir entre as memórias da infância do pintor. Há uma espécie de ambiguidade
inocente nesta perna verde, capaz de se transformar em verde cão. O pintor
deixa-se conduzir pela associação de ideias, para ele, perna e cão tornaram-se
em meros heterónimos de verde: coisas bem mais inacreditáveis do que esta têm
sido possíveis, não há que admirar. Ninguém sabe o que se passa na cabeça do
pintor enquanto pinta. O retrato está feito, vai juntar-se às dez mil
representações que o precederam. É uma genuflexão devota, é uma risada de
troça, tanto faz, cada uma destas cores, cada um destes traços, sobrepondo-se
uns aos outros, aproximam o momento da invisibilidade, aquele negro absoluto
que não reflectirá nenhuma luz, sequer a luz fulgurante do sol, que faria então
à breve cintilação de um olhar, em frente a apagar-se tão cedo. Entre a reverência
e a irreverência, num ponto indeterminável, estará, talvez, o homem que Fernando
Pessoa foi. Talvez, porque também isso não é certo. Albert Camus não pensou
duas vezes quando escreveu: «Se alguém quiser que o reconheçam, basta que diga
quem é». No geral dos casos, o mais longe a que chega quem a tal aventura ouse
propor-se é dizer que nome lhe puseram no registo civil.
Fernando
Pessoa, provavelmente, nem tanto. Já não lhe bastava ser ao mesmo tempo Caeiro
e Reis, cumulativamente Campos e Soares. Agora que já não é poeta, mas pintor,
e vai fazer o seu auto-retrato, que rosto pintará, com que nome assinará o
quadro, no canto esquerdo dele, ou direito, porque toda a pintura é espelho, de
quê, de quem, para quê? O braço levanta-se, enfim, a mão segura uma pequena
haste de madeira, de longe diríamos que é um pincel, mas há motivos para
suspeitar: nele não se transporta uma cor verde, ou azul, ou amarela, nenhuma
cor se vê, nenhuma tinta. Este é o negro absoluto com que Fernando Pessoa, por
suas próprias mãos, se tornará invisível.
Mas os
pintores vão continuar pintando.
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