Santa Maria de Iquique
Santa Maria é
o nome da escola, por isso supõe-se que a santa propriamente dita, a do céu,
não interveio no assunto como, em princípio, a estaria obrigando a sua potestade.
O nome do lugar é Iquique,
um porto de mar então importante no norte do Chile, numa região rica em
salitre, essa mistura de nitrato de sódio e nitrato de potássio directamente
criada no inferno, como de certeza pensariam os milhares de homens, tanto do
Chile como dos países limítrofes, que na sua extracção trabalhavam. Estamos em
1907. Inevitável como o destino porque essa é a lógica soberana do capital, a
impiedosa sobre-exploração da força de trabalho dessa pobre gente acabou por
atingir extremos insuportáveis. A greve foi a resposta natural. Dos povoados
mineiros nas montanhas começaram a descer, primeiro centenas, logo milhares de
trabalhadores que se concentraram na escola Santa
Maria, em Iquique. Depois de vários dias em que os grevistas tentaram, sem
resultado, negociar, as autoridades governamentais, pressionadas pelos capitalistas
estrangeiros, decidiram pôr fim de qualquer maneira ao conflito. No dia 21 de
Dezembro, mais de 3000 pessoas, não só mineiros, mas também velhos, mulheres e
crianças, foram criminosamente chacinadas pelas forças militares convocadas
para a repressão. Ao Chile não têm faltado páginas negras. Esta foi uma das
mais trágicas, e das mais absurdas também.
Décadas mais
tarde, o compositor chileno Luis
Advis, um músico autodidacta de enorme talento, compõe e escreve a Cantata
de Santa Maria de Iquique para o grupo Quilapayun. Apresentada ao
público nos primeiros anos de 70, a Cantata
de Santa Maria é, ainda hoje, um dos mais altos expoentes da Nova Canção
Chilena e de grande parte da América do Sul.
Tenho-a aqui em DVD, noventa minutos guiados por esse mágico instrumento que é
a flauta andina e pelas magníficas vozes dos componentes do grupo. Também lá
apareço. Poucos dias antes da minha entrada no hospital, em Novembro de 2007,
vieram aqui para que eu gravasse uma declaração. Aviso já que não sou o José
Saramago, mas o seu fantasma. Não há outras imagens tão chocantes de mim nesse
período. Quase me apetece pedir que as eliminem, mas o vivido, vivido está e
não se deve negar. De todo o modo, ao lado daqueles 3000 mortos, a modéstia
aconselha a moderar as expansões de uma pena pessoal. Fiquemos por aqui.
P.S.: Não é
fácil encontrar no mercado a Cantata de
Santa Maria de Iquique. Se a alguém tiver interessado o que acabei de
escrever, ao ponto de querer compartilhar estes sentimentos, dirija-se ao produtor
executivo Carlos Belmonte, cuja direcção electrónica é c.belmonte@accionvisual.com.
Espero que mo agradeçam.
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