Recordações
Somos a memória que temos, sem
memória não saberíamos quem somos. Esta frase, brotada da minha cabeça há
muitos anos, no fervor de uma das múltiplas conferências e entrevistas a que o
meu trabalho de escritor me obrigou, além de me parecer, imediatamente, uma
verdade primeira, daquelas que não admitem discussão, reveste-se de um
equilíbrio formal, de uma harmonia entre os seus elementos que, pensava eu,
contribuiria em muito para uma fácil memorização por parte de ouvintes e
leitores. Até onde o meu orgulho vai, e apraz-me declarar que não chega muito
longe, envaidecia-me ser o autor da frase, embora, por outro lado, a modéstia,
que também não me falta de todo, me sussurrasse de vez em quando ao ouvido que
tão certa era ela como afirmar com toda a seriedade que o sol nasce a oriente.
Isto é, uma obviedade.
Ora, até as
coisas aparentemente mais óbvias, como parecia ser esta, podem ser questionadas
em qualquer momento. É esse o caso da nossa memória, que, a julgar por
informações recentíssimas, está pura e simplesmente em risco de desaparecer,
integrando-se, por assim dizer, no grupo das espécies em vias de extinção.
Segundo essas informações, publicadas em revistas científicas tão respeitáveis
como a Nature e a Learn
Mem, foi descoberta uma molécula, denominada ZIP (pelo nome não perca), capaz de
apagar todas as memórias, boas ou más, felizes ou nefastas, deixando o cérebro
livre da carga recordatória que vai acumulando ao longo da vida. A criança que
acaba de nascer não tem memória e assim iríamos ficar nós também. Como dizia o
outro, a ciência avança
que é uma barbaridade, mas eu, a esta ciência não a quero. Habituei-me a ser o
que a memória fez de mim e não estou de todo descontente com o resultado, ainda
que os meus actos nem sempre tenham sido os mais merecedores. Sou um bicho da
terra como qualquer ser humano, com qualidades e defeitos, com erros e acertos,
deixem-me ficar assim. Com a minha memória, essa que eu sou. Não quero esquecer
nada.
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