sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O VELHO JANDIAS


Durante todo este mês de Fevereiro os locutores da televisão nos martelaram os ouvidos com a sugestiva e originalíssima frase: «Está um frio de rachar!»
Rachar o quê? Lenha para o lume, naturalmente.
De rachar ou não, durante este mês de Fevereiro, os termómetros desceram aos dez graus negativos na minha aldeia. Mas sabem lá os senhores da televisão onde fica a minha aldeia? Conhecem Lisboa, o Porto, a serra da Estrela e pouco mais. E o partidão que eles têm tirado dos zero graus de Lisboa e arredores para gargantearem lamentações de Jeremias sobre a desgraça dos velhos que não dispõem de roupa para o corpo nem lenha para o lume e das crianças que se vêem obrigadas a frequentar escolas sem aquecimento suficiente.
Que pena no meu tempo não haver televisão! Estou mesmo a ver os trenos que esses corações sensíveis não teceriam sobre a desventura dumas criancinhas que percorriam diariamente vários quilómetros de maus caminhos para frequentarem uma escola, já não digo sem aquecimento, luxo ao tempo desconhecido, mas sequer uma retrete. Quando a necessidade apertava, e a professora deixasse, corríamos atrás daquelas paredes e toca a despachar.
E não me lembro de algum de nós, e éramos uns quarenta, de ambos os sexos e das quatro classes, se queixar do frio. Bastava que nos dessem cinco ou dez minutos para correr e saltar no largo e regressávamos com as pilhas carregadas de calorias para o resto do dia.
Pudesse eu hoje fazer o mesmo. Infelizmente não posso. Aí é que os velhos estão em desvantagem. Quanto às crianças das escolas, deixem-nas correr que elas aquecem.
E a propósito de velhos e frio, vou contar uma passagem da minha luminosa infância.
Teria eu uns cinco ou seis anos e frequentava o jardim-escola do monte atrás das vacas. Um dia fui com elas para Castanheira. Do outro lado da parede guardava as dele o velho Jandias, de Medeiros, aldeia contígua à minha. Fazia o tal frio de rachar e eu cabriolava lameira acima e abaixo, para aquecer. Às tantas fez-me espécie que o meu colega de pastoreio se mantivesse muito quieto e encolhido de encontro ao tronco dum carvalho. Aproximei-me. O homem vestia capa de burel já esgarçada no capuz e nas ombreiras, camisa de estopa a pedir barreta, jaleco e calças de estamenha com remendos sobrepostos e não usava carpins. Viam-se-lhe os calcanhares cheios de calosidades e imundícies a sobressaírem duns socos abertos forrados de palha. Choravam-lhe os olhos e o nariz e todo ele tremia e matraqueava os dentes como se estivesse com sezões. Assustei-me:
Está doente, Ti Jandias?
Não. Estou com frio.
Porque não dá uma corrida para aquecer?
Oh, meu homem! Isso foi tempo… Agora as pernas já me não permitem floreados desses…
Na altura não compreendi. Hoje compreendo perfeitamente. Só é pena ser tanto à minha custa…[1]
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 49 e s.)


[1] Imitação de Luís de Camões.
«Mas eu de vossos males e esquivança,
De que agora me vejo bem vingado,
Não o quisera eu tanto à vossa custa»
       Soneto n.º 177.

Sem comentários:

Enviar um comentário