quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A RAPOSA E O MENINO


Como sempre o tenho feito, também este ano vim passar o Natal à aldeia. Costumo dizer, na brincadeira: para mim, Natal fora da aldeia, não é Natal. Natal é a festa do Menino. Ora foi aqui que eu fui menino.
Nesses recuados tempos, Peireses era uma aldeola tão isolada e perdida no mapa, que nunca o Pai Natal por aqui passou. Também, se passasse, não encontraria nas chaminés, e eram muitas, um sapatinho para amostra. Todos nós andávamos de tamancos.
Era de tamancos que íamos beijar o Menino à capela. Aquilo era um estrépito de tamancos nos taburnos de granito, que até os santos dos altares nos faziam carranca. Só o Menino, de costas nas palhinhas do presépio, continuava a sorrir o seu eterno sorriso estereotipado.
Bem te percebo, maganão – dizia-lhe eu em pensamento, enquanto lhe beijava o pezinho rubicundo , ris-te, porque sabes que os Reis Magos vêm a caminho e te vão encher de presentes. Bem podias dividir comigo, felizardo. Dizem que vieste para me remir do pecado. Preferia que tivesses vindo para me dares uns socos novos, que estes que trago andam nas lonas e já metem água.
A bem pouco se resumiam as minhas ambições. Mas eu acreditava e era feliz.
Acreditava no nascimento do Menino, na vinda dos Reis Magos.
Passei horas a olhar para o céu estrelado, à descoberta da Estrelinha do Oriente. Deve ser por isso que eu sempre fui um cabeça no ar. É por isso que eu ainda hoje conservo o hábito de olhar para o céu estrelado.
Assim aconteceu ontem, noite de Consoada. A ceia foi superabundante, abusei e custou-me a conciliar o sono. Farto de dar voltas na cama, levantei-me e vim para a janela. Em noites frias, límpidas e sem lua, o céu de Barroso é um dos mais belos e misteriosos do universo. Há uns setenta e cinco anos que, nesta quadra natalícia, o observo atentamente. Pois bem. Nunca vi estrela nenhuma a mover-se pelo firmamento ao ritmo duma cáfila de dromedários ajoujados de ouro, incenso e mirra. De modo que, a mítica Estrelinha do Oriente a indicar o caminho de Belém aos Reis Magos, deve ser fábula.
Cansado do espectáculo, ia a retirar-me da janela, que vejo eu, rua acima? Uma raposa… Quedei estupefacto. Teria visto bem? Uma raposa rua acima e nem um latido de cão, um alvoroço de galináceos nas capoeiras, um tiro de espingarda?
Abri a janela devagarinho e debrucei-me. Não havia dúvida. Uma raposeta de samarra nova, lépida, despreocupada, com o ar mais inocente deste mundo, rua acima.
Abanei a cabeça, ainda tonta do vinho da ceia, pensativo e incrédulo. Irá ela visitar o Menino? Estarei eu perante um milagre? Será que afinal, esta sempre é a «Noite Santa», a «Noite de Paz», a «Noite da Concórdia», não só entre os homens, mas também entre homens e bichos e entre bichos, homens e Deus?
Apeteceu-me descer à rua, ir atrás da raposa, pegar nela ao colo, beijá-la, perguntar-lhe se já tinha ceado, se precisava dalguma coisa. Mas a geada bateu-me em cheio nas orelhas e obrigou-me a fechar a janela e correr para o leito.
Adormeci feliz, a cantarolar o «Glória a Deus nas alturas e Paz aos homens e aos bichos na terra».
Acordei com o sol de Inverno na vidraça e grande alarido na rua. Fui ver o que era. Uma vizinha a maldizer a porca da vida: «Oh, gente! Não quereis lá ver? Com a azáfama da Consoada, esqueci-me de fechar as galinhas. Sabeis o que me aconteceu? Veio a raposa e levou-mas todas. Vinte e duas! Excomungada! Teve melhor Natal do que eu… De veneno lhe sirvam!» E chorava desconsoladamente.
Fiquei desiludido. Afinal, o milagre estava explicado. Ora cebolório!
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 76 e s.)

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