segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

[1968], 27 de setembro

No Café, deixei desfiar de pérolas de fumo:
– Apesar de tudo, custa-me a crer que o Marcelo despreze a grande zona da opinião pública intelectual e pequeno-burguesa, que se opõe ao regime, e não tente sequer conquista-la com ilusões. É o único toque que poderia dar novidade e abertura ao seu consulado…
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Mas no discurso inicial pouco tempo perdeu connosco, claro. Nem admira, preocupado com a vigilância do Argus dos mil olhos dos “ultras”. Falou, sobretudo, para essa gente desejosa de escutar os chavões tranquilizadores do costume, que ele utilizou como quem recapitula lugares-comuns necessários: o “génio” do Moribundo, a continuação da guerra em África, o olho posto nos perturbadores da retaguarda e a defesa da Ordem pública para gozo das “pessoas honestas”, sem esquecer a inevitável condenação do comunismo, “sepultura da liberdade dos Indivíduos”, etc.
E só, em certa altura, para nos passar um vago sabor a mel na boca, se referiu timidamente a “algumas liberdades que se desejaria ver restauradas” (portanto, independentemente suprimidas, ou não?)…
Por enquanto, a subida ao trono de Marcello Caetano trouxe-nos apenas esta vantagem (e não pequena, sejamos justos): o desaparecimento de cena do sinistro Paulo Rodrigues, fascista-nazi de costumes dúbios que, à sombra do ex-primeiro Ministro meio gágá, e sob o pretexto de defender a retaguarda (talvez para consolo da própria “retaguarda”), impunha uma censura infame a todas as manifestações de espírito: teatro, cinema, literatura, jornalismo… Com a supressão desse bistre, vai poder respirar-se se um pouco mais. Não muito, talvez. Mas imenso, para quem vivia com os lábios “por lei cosidos na face”.
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Agora mesmo, sintonizei por acaso a estação clandestina “Portugal Livre” (oriunda de Praga, suponho), onde uma rapariga com voz de exaltação quase histérica incitava aos gritos os portugueses a virem para a rua combater, lutar, morrer, construir barricadas…
Mas isto é connosco? – perguntei a mim mesmo, pasmado com esses heroicos revolucionários emigrados que ignoram o facto comezinho da despolitização geral do nosso povo, que não quer bater-se por coisa nenhuma.
Liberdade, sim – mas oferecida numa bandeja. E mesmo assim com a condição de saber a tirania disfarçada!

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