segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Os Cordoeiros: Domingo, Fevereiro 29 [2004]

Muro na Cisjordânia

O Supremo Tribunal de Israel,apreciando uma petição feita por israelitas e palestinianos do grupo Comitê Popular contra o Muro na Cisjordânia, determinou que o governo deve suspendê-lo, por uma semana.
Também, na semana passada, o Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, se reuniu para avaliar a legalidade do muro.
Na quinta-feira passada, dois palestinianos foram mortos por tropas israelitas durante um protesto para impedir a construção do muro, em Bidou.
Mais um apartheid! Uma vergonha!
# posto por Rato da Costa @ 29.2.04

Efeméride

Em 29 de Fevereiro de 1792, em Pesaro, nasceu Gioacchino Antonio Rossini. Das 40 óperas que escreveu, destaca-se Il Barbiere di Siviglia, representada, pela primeira vez, em 1816, em Roma.

Entrevista

Esclarecida e esclarecedora a entrevista de Clara Sottomayor, professora na Faculdade de Direito da Universidade Católica do Porto. Publicada no Notícias Magazine de hoje, esta especialista em direito de família e de menores tece considerações muito relevantes sobre os muitos disparates que se têm tecido à volta do Caso Casa Pia. A ler e a guardar.

Julgamento

«O juiz mandou-me finalmente erguer e, sem tirar os olhos dum maço de processos que tinha sobre a mesa, perguntou-me:
- Tem mais alguma coisa a alegar em sua defesa?
Era um homem de olhos pequeninos, penetrantes, entrincheirados nuns óculos de míope, e tinha os cabelos raros e revoltos sobre a testa vasta e luzidia. Acompanhara todo o julgamento com a mesma automática indiferença com que certos padres oficiam. Digo mesmo: como se não acreditasse na eficácia da Justiça.
O delegado, esse, compusera uma grande e nobre seriedade para a galeria, que seguiu com ávido interesse o julgamento, não decerto por amor da Justiça, nem porque eu lhe inspirasse comiseração: mas para ouvir relatos dramáticos e torpes. Que disse ele na sua acusação? Não me posso lembrar precisamente: coisas confusas, palavras ocas, gestos... Apenas sei que terminou pedindo contra mim a mais grave das penas aplicáveis aos meus crimes.
Quanto aos senhores jurados, bocejavam, quando não dormiam. Do meu defensor, é estranho, mal me lembro. E inútil insistir. Ai de mim, no meu passado alguma coisa há-de ficar inexplicável. Durante o julgamento caí provavelmente numa destas letargias que me alheiam por completo do ambiente. Desde muito novinho que certos estados de abstracção, ou de torpor, me perturbaram ou inibiram a atenção: durante eles o espírito como que me abandonava, deixando-me entregue ao puro mecanismo vegetativo.


Estremeci. A pergunta do juiz fez-me voltar a mim. Ergui-me e levei a mão direita ao bolso interior do jaquetão, na intenção de puxar do manuscrito que compusera para ler ao tribunal. Um instinto, porém, advertiu-me a tempo: em lugar dos papéis, saquei do lenço, e enxuguei com ele o suor que me escorria da testa. Deixei o rolo no fundo da algibeira e, depois duma pausa, com as mãos pendentes, inclinando-me um pouco, respondi com voz nítida e pausada:
- Declaro mais uma vez que pratiquei todos os crimes de que sou acusado!
Ao dizer isto, o meu coração palpitou vivamente, de quase amorosa alegria.
- Está bem - disse o juiz, sem olhar para mim. - Sente-se além e espere.
- Aí não, daquele lado! - explicou o beleguim, atalhando-me a passagem.
Ouvi atrás de mim um soluço abafado num lenço (era a Luísa) e depois um rumor de comentários excitados. Senti-me cheio de orgulho e atirei um olhar de desafio à multidão que enchia o tribunal. É que eu sou na verdade um caso raro!
Sentei-me num banco, junto da teia, no meio de outros réus, que me olhavam com estranheza e curiosidade. Um deles, que eu nunca vira, acotovelou-me e disse-me ao ouvido num tom de voz familiar e um hálito medonho:
- Apanhas a carga toda!
Encolhi os ombros com indiferença.
Houve em seguida um burburinho; os senhores jurados ergueram-se, batendo as solas no estrado, esticando as pernas que a imobilidade entorpecera, e foram saindo em fila por uma porta baixa, ao fundo, conversando e rindo, com muitas vénias e teimas, enquanto o juiz, reanimado, dava instruções ao presidente. O delegado sumiu-se, muito digno, sobraçando a pasta. No vão duma janela, dois advogados de longas cabeleiras discutiam como dois fariseus sobre pontos da Lei, com afectada e quase cómica solenidade, e segredavam rindo. Na bancada da defesa, absorvido em admiração e estupidez, um estudante seboso e cabeludo procurava fixar-lhes a atitude e o gesto. Era o meu defensor!
O escrivão não se mexeu do seu lugar: amarelo e distraído, tinha o ar dum processo arquivado e esquecido sob o pó. Conservou as mãos descoloridas e magras cruzadas sobre o pano vermelho da mesa, todo esburacado, e não se atrevia a fitar-me nos olhos. Reparei no entanto que me observava a espaços, disfarçadamente, com uma expressão de mágoa ou piedade; então, pus-me a olhá-lo com tal insistência que o obriguei a corar. Ri-me e deixei-o em paz.
É quase certo que, lá por dentro, me chamou cínico e descarado.


O tempo corria devagar, naquela sala que mais parecia um longo esquife, de paredes empoeiradas com painéis antigos de azulejos pintados a flores convencionais. De quando em quando ouvia-se o tilintar das armas dos soldados. Uma aranha, indiferente às misérias e pompas da Justiça, tecia a sua teia num velho bico de gás, sobre as nossas cabeças.
Cheirava mal: a suor, a aguardente e a pó. O ar espesso e envenenado entorpecia. Os guardas dormitavam de pé. O rumor das conversas subia num crescendo, até que o beleguim lhes punha termo com um berro. Podia-se então ouvir o zumbido de duas moscas que turbilhonavam sobre a calva do escrivão como dois acrobatas numa pista. O pobre homem sacudia-se com um desespero fatalista. Assoei-me para que não me vissem rir.
Nesse momento, um sujeitinho gordo e corado veio cochichar-lhe qualquer coisa ao ouvido, deu-lhe uma palmada amigável e eloquente nas costas atrofiadas, e desapareceu, sorrindo para a turba com ar de alegre suficiência e fazendo adeusinhos com a mão papuda para todos os lados. Era um causídico famoso nos anais do crime. Concluí que o escrivão devia sofrer de enterocolite mucomembranosa e de contrariedades domésticas.
Mas tanta expectativa acabou por me impacientar: para que diabo haviam de perder tanto tempo, se a minha condenação era certa e segura, e eu a desejava do mais íntimo da alma? Pensei na penitenciária, e alvorocei-me: devia ser bem melhor que o tribunal. Este aparato sem dignidade nem grandeza, a acumulação de gente, o movimento incessante, a companhia dos outros réus, tudo me desviava dos meus interesses mais vivos e profundos. Eu não tinha sequer esboçado uma defesa. Estava morto por me ver dali para fora, condenado, arrumado para sempre, livre do mundo.
Minha mulher esperava atrás de mim, para além da teia. Voltei-me a olhá-la, e via-a sorrir entre as lágrimas. Creio que me fez um sinal, mas não cheguei a percebê-lo. Tinha os olhos pisados. Ergui os ombros, desinteressado, pois nenhuma dor, nem mesmo a dela, já me impressionava. Ao contrário, desejaria não tornar a vê-la, esquecer tudo, seguir um rumo novo. A dor humana perdera para mim todo o sentido.


O manuscrito que eu tinha na algibeira era a tentativa de explicação do meu procedimento. Não se riam. Não queria, com ele, atrair sobre mim a complacência do digno tribunal, mas provar que a natureza do meu crime era duma complexidade excepcional, que o punha fora e muito acima dos seus fáceis juízos. Escrevera-o à pressa, na cadeia, durante a instrução do meu processo, pensando, comovido, no efeito que a sua leitura iria produzir no julgamento. Mas na verdade, que importavam àqueles homens indiferentes as razões do meu crime e da minha serenidade, que eles por certo classificaram de cinismo?
Os cidadãos desejam que se lhes torne o mais leve possível o «direito» de julgar. Teriam morrido de tédio, ter-se-iam talvez rido, ao escutar a verdade minuciosa dos meus estados de alma. A Verdade, para os cidadãos, é sempre cómica ou corrosiva: desperta o riso - ou reclama medidas de segurança. A que interessa aos tribunais é uma verdade formal, relativa, decalcada nos figurinos da Lei. No fundo, os jurados eram necessariamente estúpidos: a ordem psíquica e moral estava-lhes vedada. Factos! Factos! - Eu seria para eles, apenas, o homem que matou para roubar.


De repente, abriu-se a porta do fundo e o beleguim bradou:
- Está reaberta a audiência! Façam favor de se alevantar!
O juiz e os jurados entravam de novo no pretório. Toda a sala se encheu de rumor e agitação. Respirei aliviado. Era o epílogo da farsa - para mim, o começo de tudo. À custa de ameaças e empurrões, no meio dos quais se erguia o choro desesperado e agudo duma criança, tudo serenou em menos de um minuto, e o presidente do júri, todo curvado, ajeitando as lunetas aflitivamente, leu quesitos e respostas no meio dum silêncio tumular. A sala inteira parecia pender dos seus lábios ressequidos e incolores. Atrás dele, hirtos e inexpressivos como acólitos de padre num enterro, os jurados esperavam a sua própria libertação. O juiz interrompia às vezes a leitura, impaciente, para dar esclarecimentos, e eu mordia a boca para não rir nem gritar. A cada resposta - «está provado por unanimidade» - acendia-se um rumor de comentários. O juiz sentou-se por fim, e, folheando um velho código de folhas amareladas e cobertas de notas, redigiu rapidamente a sentença. Ouvia-se o ranger do aparo, o roçar das folhas do livro e o pigarro dum jurado velho. Chegou-me um aroma fresco de laranja vindo da janela, como um raio de sol... Apanhei a carga toda, conforme profetizara o camarada.
Senti-me empurrado, sacudido, levado pelo braço. Seguiu-se uma enorme confusão. Não me posso lembrar do que se deu a partir daquele instante: recaí decerto no meu alheamento, como num sono de ópio. Só muito mais tarde, na cadeia, consegui com muito esforço, e mesmo assim com falhas, reconstituir a cena do julgamento, que de todo se me varrera da memória. Não há dúvida, eu reconheço que há qualquer coisa em mim. Por isso já não estranho que estas recordações me subam indistintas, enevoadas, sem nexo - como se outro, e não eu, as houvesse vivido.»


José Rodrigues MiguéisPáscoa Feliz, editorial estampa, 5ª ed., p. 11-18
# posto por Rato da Costa @ 29.2.04

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