domingo, 20 de fevereiro de 2011

[1989] 20 - Fevereiro (segunda).

Hoje na cantina uma senhora falou-me do pai, que fora amigo do meu professor primário, Serafim Ribeiro. E agora lembrei-me de segurar aqui pelos cabelos imaginários (que os reais já se despegaram) os professores primários que tive. E eles viverão um pouco do pouco que eu viver.
O primeiro professor que tive chamavam-no Ginó. Nome esquisito. Mais tarde, já adulto e maioritário na minha cultura geral, pensei que o nome do homem devia ser Junot. O que significaria que o pai dele, dado ao progressismo liberal, devia ter homenageado no filho o general napoleónico. Porque nos progressistas do tempo, a invasão era equívoca e dava para os dois lados: o do patriotismo que não gosta de que lhe invadam a casa, e o do progressismo que pressupostamente Napoleão levava ao domicílio «de contrabando», como dizia Garrett, que admirou o grande homem até lhe passar o acne juvenil. É um pouco, aliás, o que aconteceu com Pombal, que deixou um rasto de progressismo por cascar nos jesuítas, e de açougueiro por bater também nos arredores sem eles. O amigo «Ginó» deixou-nos cedo e quem entrou a rendê-lo foi o Serafim Ribeiro. Era um tipo nervoso, frenético de vitalidade e que para lhe dar escoamento batia cheio de entusiasmo. Sabia umas coisas. O bastante para não ser mau. E só urna vez me arreou, não por ignorância minha, juro-o por Apoio, mas por desleixo em cumprir-lhe as ordens. Porque de vez em quando montava na sua BSB, que era uma moto rasteira em que vinha da sua aldeia de Nabais, e desaparecia supúnhamos que para Gouveia. E no intervalo de ausência delegava num aluno a manutenção da ordem. Mas esse intervalo ia muitas vezes até ao dia seguinte. O encarregado da disciplina dava então no fim do horário ordem de despejo da aula, rodava a chave na fechadura e ia-se embora. Mas um dia em que fiquei eu de guarda e era dia de S. João com fogueiras e bombas da festa, o demónio apossou-se dos colegas e eles apossaram-se-me da alma, sugerindo-me que fechasse a loja porque o patrão só voltaria no dia seguinte. Voltou no mesmo. E recuperados por um emissário todos os alunos, chegou-me aviso também a mim — e regressei. E o professor, desaustinado de ira e frenesim, com a palmatória que era a «menina dos cinco olhos», destruiu-me as mãos com pancadaria. E agora que recordo o suplício, o que me apetece é meter as mãos nos bolsos para me doer menos, no caso de ainda apanhar mais. 

Sem comentários:

Enviar um comentário