terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

[1989] 15 – Fevereiro (quarta).

Corro o mais possível para a morte me não apanhar. Sinto-a no encalço e então penso no Lúcio, nos dois anos ainda de prazo — e reajo, respiro fundo e a morte pára a reconsiderar. Mas vai ser difícil esquivar-me tanto tempo. E a esta ideia súbita de que a coisa está a arrumar-se, de novo me assalta a ideia fria sobre o que fiz. Como é ilusório pensar-se que me rebolo em mim, cheio de gozo e orgulho. Estou à rasca. Mas o que sobretudo me confunde é não poder entender porque é que os catedráticos da opinião não me dão salvo-conduto, porque é que os que vêm vindo à superfície são aceites em glória, aqui e lá fora, porque é que, em suma, falhei. Tenho, é verdade, um certo número de leitores que me aguenta uma vida, adere ao que escrevo, pelo que penso e vou sendo em arte, mas é um grupo discreto e sobretudo escasso em cotação. Os patrões da opinião não passam por aqui. Eu disse que um medíocre não sabe que é medíocre precisamente porque é medíocre. E isto, decerto, para outros níveis de se ser. Em todo o caso, há autores que admiro e que também passam pela admiração alheia. Além de que a opinião externa também condiz com a de cá. Mas o que me aflige e transtorna o juízo é eu não perceber por que é assim. Compreendo o bastante para distinguir a fronteira do aplauso e reprovação para o que respeita ao tom. Sou doente da corda sensível — compreendo. Mas e o resto? Então o meu mundo, esse em que se desenvolve o que escrevo, é assim tão menorizável? As historietas dos meus confrades são assim tão mais plausíveis e memoráveis? Depois, eu sou decerto o único escriba de um país que ao fim de 50 anos de produtividade apanhou pela cara com os insultos públicos mais escabrosos. Significa isso que os insultantes não se julgam em risco de descrédito e chacota pelo facto de chacotearem. Ninguém se atreveu a enlamear qualquer escriba já vergado assim pelos anos e pelo que neles foi segregando. É que em tal caso a lama emporcalhava-os por efeito de ricochete. No meu caso, não há perigo. Ora isso é de obrigar-me a reflectir. 73 anos de biografia, 50 de bibliografia. E fiasco para cobrir uma e outra? Sinto-me confuso como um extra-terrestre. Vou ser humilde como compete à minha humilhação. Porque se calhar nem se chama assim. Digamos bom gosto. Ou clarividência. Ou sensatez e justiça. Que estupor de sorte a minha que as não tive. Sinto-me pior do que um comunista ao ver agora que tudo foi um vigário. Ou um «embuste» como diz o Mário Soares em linguagem mais decente.
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Precisava imenso de ter saúde para escrever escrever escrever. O quê? Não sei. Escrever.
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A garota corria desarvoradamente para apanhar o autocarro na paragem. Sigo-a ardentemente com os olhos e desejo com muita força dentro de mim que ela o apanhe. Mas no instante em que ela chega, o carro pôs-se em andamento. Então a miúda correu ainda e bateu na porta de entrada. E o motorista abriu-a. E a miúda subiu e entrou. 

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