sábado, 26 de fevereiro de 2011

[1989] – 26 – Fevereiro (domingo).

Ouço uma balada de Coimbra e inevitavelmente reapareces. Moravas no terceiro andar de um prédio esguio, pegado ao «Jesuíta», à entrada da rua Larga. Podias reaparecer em qualquer parte da cidade, mas vejo te sempre na vinda para a Faculdade. E é quase sempre inverno. Vestes um casaco escuro, talvez preto, e sinto nas mãos como deve ser macio. Fina, alada, o rosto pequeno, endurecido de sisudez. E o andar subtil, no frémito breve da anca adivinhada, da brevidade dos pés. Vens da rua Larga, viras à Faculdade e vejo-te de costas desaparecer no largo portão. E há depois na minha memória um silêncio rarefeito de uma súbita aparição que se desfez.
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Continuo com a minha cabeça confusa. Ontem em Évora temi vir-me abaixo. Cérebro espesso, tonturas, uma massa compacta nos ouvidos e sempre uns silvos agudos, se lhes presto atenção. Mas sobretudo me aflige a ideia de que vou perder os sentidos. Ou de que o coração vai parar. E ao mínimo aviso, entro em pânico. E agrava-se a situação. E fico à espera de que a coisa se desenlace. Vivo permanentemente num certo ponto crítico. Há uma nebulosa no cérebro que se não desvanece. Tenho dores nos ossos do crânio. E o mais decisivo para saber como estou é fumar um cigarro. Sinto que me rebentam no cérebro todos os fusíveis. Que fazer? Como trabalhar? Não bastava todo o desânimo na continuação do romance. Faltava-me ainda a incapacidade física. Definitivamente perdido? O romance (e eu)?
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É bom não se terem mais obrigações culturais, não ter de se ler senão aquilo de que se gosta, construir a obrigação em devoção. E bom perguntarem-nos se já lemos tal ou tal livro e dizermos que não — e não passarmos enfim por incultos, mas por quem pode ignorar, se for isso ser ignorante.
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A questão do racismo só se resolve definitivamente com a batalha demográfica. Seremos então invadidos pelos pretos (e talvez amarelos) e se houver racismo será dos pretos contra os brancos e estes apenas terão a vantagem de ser mais instruídos do que eles. Mas os gregos também o eram em relação aos romanos e a vitória deles cultural não chegou para não serem vencidos (Graecia capta cepit ferum victorem — Horácio).
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Acreditei em mim, ou seja no que fiz, ou seja no que realizei durante cinquenta anos de aplicação. Errei, oscilei no meu gosto, mas o que acertei não foi escasso. De tudo isso, porém, bem poucos me deram razão. Agora a luta acabou e retiro-me do combate. Sento-me ao sol de inverno do fim. Não tenho mais nada a dizer nem a suportar o que outros digam. O meu problema agora é só comigo, com um pouco de dignidade no acabar. Fui vencido, razoavelmente enlameado, não tive grande público a ouvir-me, aqui ou lá fora. Há decerto um erro em mim que não vi. E é por isso que não consegui distinguir sobre o meu erro o acerto alheio. Mas tudo acabou. E é bem isso que eu procuro de sossego no coração e no que o faz com frequência desconcertar. Cerro a porta. E que ninguém bata, porque não abro.
V. Ferreira

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