segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

MADUREIROS

O tempara! O mores![1] «Ó tempo das amoras!» Verdadeiramente, o tempo das amoras é Setembro. Mas neste fim de Agosto já elas estão coradinhas e apetitosas. Nos meus tempos de rapaz não se viam tantas amoras maduras à berma dos caminhos. À uma, os lavradores não deixavam medrar tanto as silvas. À outra, garotos e melros vindimavam nelas à tripa forra. «O melro pica na mora» era o estribilho preferido por mestre Saias quando, no calor duma desgarrada à «cana verde», precisava de muleta para rimar com palavra terminada em «ora». Era um grande cantador ao desafio, mestre Saias. Estilista é que nem por isso. Se o fosse, não punha o melro a «namorar» em Setembro. Seja como for, uma coisa é certa: as amoras são cada vez mais e os melros e os garotos cada vez menos. No meu tempo eram mais que as pragas e não havia amoras que lhes resistissem. Eram os melros a «picar» e nós a fazer madureiros. Quem é que se não lembra? «Vamos fazer um madureiro?» «Vamos!». E toda a minha gente corria aos silvados a colher amoras. Elas para os aventais ou a aba dos vestidos, nós para os barretes ou a fralda das camisas. Vindima feita, toca a escolher uma pedra jeitosa, de preferência com uma depressão a meio, a servir de gamela. Depois esmagavam-se as amoras bem esmagadinhas de modo a ficarem em compota. A seguir cada qual munia-se dum garfo ou forquilha de urze. Todos a postos, ao ataque! A ver quem mais garfadas levava à boca, quem mais sorvia o molho a ventosas de lábios e língua. Resultado? Rostos e roupas mais besuntados de tinta do que palhaços pelo Entrudo. Mas que alegria! E que saudades... Porque será que as crianças de agora não fazem madureiros?
Nisto pensava eu quando comecei a ouvir um chilreio infantil para além dum campo de milho. «Quereis ver que estão a fazer um madureiro?» – disse para comigo. E estuguei o passo para ver o que era. Uma garota e três garotos, todos eles na casa dos sete, oito anos, sentados num cômoro formado por duas levadas convergentes, nesta época do ano enxutas. À volta, caprichosas figuras geométricas desenhadas no chão com ramos secos dum velho olmo há anos prostrado por estranha doença que, segundo julgo saber, levou quantos da sua espécie havia na província.
– Então estas são as vossas lameiras? – perguntei, lembrado de outras que eu, na idade deles, costumava talhar na relva a cristas de sacho.
– Não. Isto é a nossa casa – respondeu ela – Aqui é a cozinha.
– Estou a ver.
Lá estava a lareira, a lenha, os potes.
– Aqui a sala – interveio um dos garotos – O sofá, a mesa. As cadeiras.
– Aqui os quartos. A porta, as camas – e o garoto que agora falava, deitou-se nos pauzinhos que faziam de leito para eu ver.
– E ali? A horta?
– Não. A garagem.
– Desculpa. Não tinha reparado nos mercedes.
Eles riram-se, porque eram bicicletas.
– Sabeis o que é um madureiro?
– Não.
– E amoras?
– Também não.
– Mas em que mundo viveis vós?
– Na França.
– Ah! Agora percebo. Pois tendes aqui uma bonita casa. Diverti-vos e sede felizes.
E voltei costas a murmurar:
– O tempora! O mores! Outros tempos, outras brincadeiras.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 14 e s.)

[1] Tradução literal: «Oh, tempos! Oh, costumes!»

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