quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

SÃO JOÃO DA FRAGA

Nos saudosos tempos dos carros de bois, citava-se por aí um ditado que dizia: «Vacas de Peireses não servem para todas as aldeias...»
Eu levava isto à conta de ofensa. Porque é que as vacas de Peireses, valentes como quaisquer outras, não haviam de fazer figura em qualquer outra aldeia?
A resposta obtive-a eu um dia destes quando o Dr. José Lestra, que por vezes me honra e alegra com a sua visita, me desafiou para irmos de romaria à capelinha de S. João da Fraga, empoleirada num pico do Gerês sobranceiro à Barragem de Paradela.
Antes duma grande aventura, os cavaleiros medievais velavam armas. Nós batemos uma boa sesta. Depois subimos para o Jeep e rumãmos a Pitões.
– Sabes o caminho? – inquiri eu à entrada do povoado.
– Não.
– Pergunta aí.
A meia dúzia de cavalheiros que limpavam a rua, suponho que em prelúdios de festa.
– Boa tarde.
– Venham com Deus.
– Para irmos ao S. João da Fraga?
– Aí ao fundo da rua, à esquerda, encontram uma calçada. Sigam por ela.
– Até onde podemos levar o carro?
– Com um pouco de cuidado e jeito, podem levá-lo até ao Parque, para lá do ribeiro. Vocês logo vêem.
– Obrigado.
Começámos a descer a calçada. Mas o Jeep dava cada solavanco de pincha no crivo que eu, ante a ameaça de ver o fígado desprender-se-me dos ligamentos, alvitrei:
– E se deixássemos o carro e fôssemos a pé?
– Nunca mais lá chegávamos.
– É que já não aguento os pinotes da burra.
– Lembra-te de que quem tem burra e anda a pé... Mas tu lá sabes.
Por acaso não sabia. Se soubesse, estava calado. Abri a boca, saiu asneira. Aquilo parecia a descida de Orfeu aos infernos. Uma calçada íngreme, irregular, incómoda, roída de lacadas e tornadoiros de água, mais estirada do que a Muralha da China.
À medida que íamos descendo, eu lembrava-me do que, no regresso, teria de subir, e desanimava:
– O ribeiro nunca mais aparece.
– Estamos a chegar.
Lá estava ele. Límpido, alegre, cantante, ensombrado de árvores de rodada copa e agradável sombra. Um recanto do paraíso.
A esse tempo, já eu perdera todas as esperanças de alcançar o S. João da Fraga. Apeteceu-me propor ao meu companheiro que ficássemos por ali. Mas ele adivinhou-me o pensamento e levantou-se de golpe:
– Vamos!
– Vamos lá – respondi eu com uma resignação de mártir, a olhar para uma calçada bruta, agora a subir, quase a pique.
E atirámo-nos a ela, o Zé à frente, rijo báculo de peregrino em punho, mochila às costas, armado em alpinista. Eu atrás, bengalinha na mão, estojo de máquina fotográfica a tiracolo, armado em turista.
Escalados uns duzentos metros de pedregosa rampa, suspirei à vista dum troço de caminho plano por entre árvores.
– Já reparaste na beleza desta floresta?
– Deus a proteja de incendiários.
– Amem.
Por fim apareceu o tal Parque. Um airoso terreiro limpo de vegetação, mesas à sombra, churrasqueira de granito, uma pilha de achas entre dois troncos.
– Fiz asneira em te não deixar trazer o carro até aqui.
– E da grossa. Com o que já andámos, tínhamos chegado à capelinha.
– Nem me fales.
E de novo o caminho começou a descer. E, ao fundo da descida, outro riacho, mais pequeno, mas, se possível, mais soidoso e poético.
Havíamos transposto o primeiro por rústica ponte de pedra. Transpusemos o segundo por umas rústicas alpondras. E estávamos, verdadeiramente, na subida para o Gerês.
No intuito de sofrear a marcha, meti conversa.
– Sabes o que o Padre Agripino da Vila da Ponte, que tu e eu conhecemos muito bem, deixou escrito a respeito de S. João da Fraga?
– Creio que já li isso, não me lembra agora onde.
– Deve ter sido no opúsculo O que foi a Roma, da autoria do nosso comum amigo e meu compadre José Dias Baptista. Conta ele que, aí por 1940, a Repartição de Finanças de Montalegre oficiou a todos os reverendos párocos do concelho que elaborassem uma relação de todos os bens «móveis e imóveis» das respectivas freguesias. O Padre Agripino paroquiava, na altura, Pitões das Júnias. Depois de descrever a residência, quatro prédios rústicos, uma horta, a igreja matriz e três capelas existentes na freguesia, remata: «Capela do S. João da Fraga situada no Gerês. Confronta com o mundo inteiro. Só tem a imagem do Santo e um ninho de pintassilgo. Não pode ser mais pobre.»
– O que talvez tu não saibas é que os de Pitões, no dia do Santo, vêm cá em procissão, andor e tudo. Saem manhãzinha de casa e, por volta do meio-dia, estão na ermida.
– Homens de fé.
– Que sobe montanhas.
Íamos, na altura, a dobrar um cotovelo onde o caminho encurva, em ângulo recto, para a esquerda.
– Eu vou à frente, a ver se ainda estamos longe – disse o meu companheiro, estugando o passo.
Foi o que eu quis ouvir. Comecei a deixar-me ficar para trás, uma perna a pedir licença à outra.
Pacientemente, o Zé esperou por mim numa plataforma de mato entre dois cabeços rochosos.
– Lá está ela.
Olhei. A capelinha empiscava-me lá do alto, dir-se-ia das portas do céu.
– Mais uma horita e estamos lá.
Uma hora?! Descobri-me e rezei:

«Ó meu S. João da Fraga,
Vinde abaixo, dai a mão.
Estou fraquinho das pernas.
Não posso do coração.»

– Desisto – acrescentei, em alor de virar costas.
– Anda cá – disse o meu companheiro voltado para a Barragem de Paradela e a Cascata de Pitões – Admira estes horizontes. Que me dizes tu a isto?
– Que estou na Suíça.
– Já lá foste?
– Não.
– Bem me parece. Na Suíça não há nada que se compare a isto. A esta luminosidade, a esta cor, a esta imensidão.
– Abundo no teu patriótico parecer.
– É como te digo. Se temos trazido o jeep até ao Parque, com o que já andámos, estávamos lá.
– Não me culpes. Lembra-te de que os portugueses também não chegaram à Índia na primeira tentativa. Nós hoje dobrámos o Cabo da Boa Esperança. Para a próxima, subimos à capela.
Demos volta à nau e, em amena cavaqueira, breve atingimos o ribeiro. Não resisti à tentação de me sentar numa alpondra:
– Gozemos esta amostra das delícias que Deus promete no outro aos justos deste mundo.
– Já que falas em paraíso, aqui tens a maçã de Adão – gracejou o meu companheiro, puxando da mochila.
– Para Eva, tens barba a mais.
– E malícia a menos. Por isso te ofereço duas. Come à vontade que não pecas. Tens navalha?
– Nem é precisa.
Lavei as maçãs na água lustral do ribeiro e ferrei-lhe os rijos dentes que Deus me deu e ainda conservo.
– Não queres acompanhá-las com um bocado de pão?
– Oh, homem previdente! Não me digas que também trouxeste vinho?
– Não – disse ele sacando da mochila uma garrafa de litro e meio – Água. Para ocasiões destas, a água está mais indicada.
– Venha ela.
Bebi dois tragos e fiquei na fresca ribeira.
– Quando quiseres, estou pronto.
– Ao ataque!
Atacámos garbosamente a vasta quebrada entre os dois riachos. A partir daqui principiou o meu calvário. Em pouco mais dum quilómetro de subida, acuei mais vezes do que Estações tem a Via-sacra. O meu companheiro condoeu-se da minha fraqueza e disse:
– Se te parece, ficas aqui e eu vou pelo Jeep.
– Se te não custa?
– Nada.
Fiquei um instante a ver a frescura com que o eternamente jovem José Lestra subia a calçada. Depois enfiei pelo portal duma touça de carvalhos dentro, estendi-me na ervagem seca, papo para o ar, máquina fotográfica a servir-me de travesseiro, pernas relaxadas, olhos regalados na copa das árvores. De repente, lembrei-me. Os velhos tinham razão. «Vacas de Peireses não servem para todas as aldeias.» Nem as calçadas de Pitões para velhos como eu...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 18 e ss.)

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