terça-feira, 10 de janeiro de 2012

PATOS BRAVOS

Uma vaga de calor originária do norte de África varreu o fim-de-semana do último domingo de Julho.
A Direcção Geral de Saúde fartou-se de emitir comunicados a recomendar aos velhos roupas leves e largas, muita ingestão de líquidos e sítios frescos.
Tudo isso segui à risca. Pus um chapéu de palha e uns calções, muni-me dum liteiro e duma garrafa de água e fui para junto do rio.
Em Peireses, Rio, assim sem mais atributos, é o Regavão.
Nesta época do ano está ele reduzido a um fiozinho de água que lá vai deslizando e rindo de pedra em pedra e de charco em charco. Não obstante, tem recantos duma saudosa beleza que não fica a dever nada à dos celebrados Mondegos, Tejos ou Limas. Lembrei-me de um onde a água cai do alto dum rochedo para uma piscina natural de muitos metros de fundura.
À piscina chama o povo Olas e servia outrora de represa a um moinho hoje em ruínas.
Estou ligado a este local desde os meus oito anos, idade com que principiei a frequentar a escola primária de S. Vicente da Chã. De Peireses éramos quatro os escolares e percorríamos diariamente seis quilómetros de caminhos velhos, ida e volta. Com vento, chuva ou neve, era casa-escola, escola-casa. Com tempo quente, porém, não resistíamos a uma escapadela aos ninhos ou a um mergulho no Rio.
Um dos nossos sítios predilectos era o moinho do Bértolo, precisamente este de que estou a falar.
Por norma, elegíamos o lençol de água que, à saída do rodízio, se espraiava por uma espécie de lagoa pouco funda mas razoavelmente comprida e larga. Aí podíamos chapinar à vontade, sem risco de afogamento.
Um dia, porém, lembrei-me de experimentar a represa. Os meus companheiros alarmaram-se:
– Está quieto, burro, que ainda te afogas!
– Afogo nada. Quereis ver?
O canal de acesso ao cubo era delimitado, duma banda pelo rochedo; da outra, por um paredão de calhaus a esmo com torrões a calafetar as juntas. Escolhi um sítio com três ou quatro metros de largura e, lançando-me do rochedo, fui agarrar-me ao paredão. Depois inverti a manobra. Entre um ponto e outro, ia dando atabalhoadamente aos braços e às pernas. Ao cabo de meia dúzia de ensaios, parecendo-me que já flutuava, aventurei-me piscina fora. Eureka! Sabia nadar... Os outros seguiram-me o exemplo. Em breve parecíamos um bando de parrecos.
Nesse tempo, o moinho do Bértolo ficava no baldio e era um descampado de rochas e tojos. Hoje pertence aos terrenos da Junta de Colonização Interna, os rochedos estão cobertos de árvores e os tojos cederam a vez a um prado ribeirinho.
Foi precisamente deste rincão de relva que eu me lembrei para estender a manta e tomar o fresco.
Ia eu ao longo da margem, silencioso pela verdura, rebenta-me dos pés um guincho esganiçado, estranho, quase horripilante, misto de grito de alarme, aflição ou praga.
Instintivamente, recuei. Mas depressa compreendi do que se tratava: um pato bravo que, surpreendido pela minha súbita e odiosa presença, dera o alerta à ninhada.
E pude então contemplar esta coisa maravilhosa. Enquanto a pata-mãe descolava, em voo descoberto, para montante, os filhotes escapuliam-se, submersos ou à flor da água, em sentido oposto.
A estes, nunca mais lhes pus a vista em cima. Pelo contrário, a pata-mãe fez tudo para atrair e fixar a minha atenção. Após um voo de poucos metros, poisou no tal lençol de água a que há pouco me referi e pôs-se a fazer evoluções em círculo, com grande estardalhaço de patas e asas, como a dizer-me: «Aqui estou. Se quiseres, mata-me. Mas não faças mal aos meus filhos.»
Comovi-me. Há por aí tantas mães humanas que matam os filhos à nascença ou se desfazem deles logo que podem. E ali estava uma mãe irracional disposta a dar a vida pelos seus...
Afastei -me discretamente:
– Desculpa, irmã pata. Volta para junto dos teus meninos e goza o resto da tarde em paz.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 11 e ss.)

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