quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

FICA-TE MUNDO CADA VEZ A PIOR

Fosse Cristo, Voltaire ou João Fernandes o primeiro a formular esta máxima, tem a minha inteira concordância. Antigamente, quando alguém se queria desfazer dum cão, atava-lhe uma pedra ao pescoço e atirava-o ao rio. Hoje, quem se quer desfazer dum cão leva-o para longe e abandona-o. Tão revoltante é um procedimento como o outro. Vem isto a propósito duma pulhice que me traz revoltado.
Haverá uns três meses, e estando eu aqui na aldeia, um familiar meu de visita perguntou-me:
– Arranjaste um cão?
– Eu?!
– Tens um preso no coberto!
Fui ver. Lá estava um cachorro preso ao chedeiro dum carro de bois. Julgando tratar-se de brincadeira de crianças, desfiz o nó do cordel que o prendia pelo pescoço e, convicto de que o canídeo, uma vez liberto, iria procurar o dono, dei o caso por arrumado.
Qual não foi a minha surpresa quando, passados uns quinze dias, de volta à aldeia, deparo com a mancha cor de limão sujo do cachorro à entrada do coberto onde costumo recolher o carro. Tão imóvel e esparramado que o julguei morto. Aproximei-me. Afinal respirava. Tão lentamente como deve respirar um urso em hibernação. Chamei por ele. Não reagiu. Toquei-lhe com a ponta do sapato. Levantou a cabeça. Reparei então que no lugar do olho direito tem uma bola branca. No esquerdo, sumido na órbita à sombra dum tufo de pêlo eriçado, uma tristeza, uma resignação, uma dor sem limites. Pedi-lhe, por gestos, que se desviasse para eu meter o carro. Deve ter compreendido porque arrastadamente se ergueu e afastou mal equilibrado nas quatro patas. Pude então reparar até onde ia a miséria do pobre animal: um tumor nos testículos, os quadris em chaga, espinha em bossa decamelo, membros titubeantes – um esqueleto semovente com a morte às cavalitas. Perguntei de quem era o cão. Ninguém me soube ou quis responder.
– Então não é cá da aldeia?
– Não. Isso são cães abandonados. Trazem-nos de longe e deixam-nos.
– E ninguém o alimenta?
– Suponho que não.
– Nesse caso, de que é que ele consegue sobreviver?
– Sei lá? Alguns restos que por aí apanha...
Compreendi então porque, de há três meses a esta parte, encontro sempre o cão deitado à minha porta. É o único lugar donde ele não é escorraçado.
Gostava de saber quem foi o safardana que abandonou o cão nestas condições. Queria ter com ele uma conversinha particular. Dizer-lhe, cara a cara:
– Quem faz isto a um cão, é bem capaz de fazer o mesmo ao pai ou à mãe...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 16 e s.)

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