Na minha infância, cá pela aldeia, ninguém festejava aniversários. A vida era dura demais para festas. Ninguém tinha bilhete de identidade. Muita gente acabava por se esquecer da data do nascimento e da conta dos anos e era feliz. Quem me dera viver assim. Mas a vida moderna não se compadece com santas ignorâncias. A toda a hora nos estão a perguntar pela data do nascimento, naturalidade, filiação, morada e não sei quantos itens mais. A toda a hora nos vemos obrigados a consultar o calendário.
Ora foi precisamente numa dessas consultas que eu reparei que, neste ano da graça de tantos de tal, faço anos no dia em que nasci [1].
Isto, que, à primeira vista, parece um disparate de Monsieur De La Palisse, deixará de o ser se eu lhe apuser uma nota explicativa. Aí vai ela.
Segundo a tradição familiar e o Lunário Perpétuo, eu vim ao mundo num Domingo Gordo dum remoto ano do século passado. Ora como toda a gente sabe, nem sempre o Domingo Gordo calha a 22 de Fevereiro.
Por acaso, este ano calhou.
Por acaso ou não, está a nevar.
O meu eremitério campestre tem uma porta envidraçada ao rés-do-chão. Colo o nariz à vidraça e olho lá para fora.
O céu tem um tom alvadio, translúcido, duma claridade de sol coado por uma calote de gelo. Não há ponta de vento. A neve cai silenciosa, vertical, compacta. Lá no alto, não se vê nada. Tudo se dilui na infinita brancura da abóbada celeste. Mas antes de poisarem na eira, os flocos distinguem-se nitidamente de encontro ao contraste do outão do palheiro.
As árvores lembram noivas afogadas em níveas rendas.
A poucos metros de mim, poisados na copa dum jovem castanheiro florido de gelo, um bando de pardais, de ordinários tão buliçosos e gárrulos, olham uns para os outros em silêncio, arrepiados, talvez famintos.
Detrás do muro da horta, salta um melro numa risada de criança. Admiro-lhe a boa disposição num dia destes.
Uma toutinegra e duas lavandiscas vêm poisar a meus pés, na mancha de terra aberta pelas pingas do beiral. Decerto não me vêem ou me consideram coisa insignificante e inofensiva.
Prefiro imaginar que me vêm dar os parabéns.
Sim. Faço hoje anos. Há um século menos uns pozinhos que vim ao mundo em dia de Domingo Gordo, depois da ceia, à hora em que os caretos andavam pelas casas a fazer rir as pessoas.
Quem nasce em noite de folia, tem obrigação de passar a vida a rir-se.
Por isso eu saí este macambúzio do caraças.
[1] Bento da Cruz nasceu a 22 de Fevereiro de 1925 na aldeia de Peireses, freguesia de S. Vicente da Chã, concelho de Montalegre.
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