segunda-feira, 14 de novembro de 2011

HAJA VENTO

Contaram-me que, no século passado, um padre de Braga foi parar à paróquia da Ilha do Corvo, nos Açores. Encontrou uma comunidade de poucas almas, a maioria das quais pouco devota e quase todas remissas ao pagamento da côngrua. Todos os domingos, durante a homilia, o pastor lembrava às suas ovelhas o sagrado dever que elas tinham de proporcionar ao seu pastor uma vida decente e livre das vergonhas deste mundo. E como elas fizessem ouvidos de mercador, um dia ele ameaçou-as:
– Se me não pagardes, vou-me embora e deixo-vos sem padre.
Respondeu-lhe um velho pescador, lá do fundo da igreja:
– Haja vento, sr. Abade...
Houvesse vento para eles poderem içar a vela e fazer-se ao mar na faina do peixe, que, sem padre, passavam eles bem.
Em Barroso, em casos destes, dizia-se:
– Haja saúde e coza o forno...
Houvesse pão e saúde para o comer, que, o resto, pouca importância tinha.
Infelizmente, hoje, os fornos do povo já não cozem.
Mais infelizmente ainda, o pão perdeu entre nós a reverência a que outrora era votado.
No tempo em que eu me criei, o pão era uma coisa sagrada, não por, durante a missa, se transformar no Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas por todos os dias se transformar no nosso corpo e sangue.
Fui educado no culto ao pão. Nunca se começava a comer sem o pão na mesa, em lugar de destaque. E sempre na postura em que estivera na fornalha. Se uma filha mais distraída colocasse a broa de parte convexa para baixo, levava logo um tabefe do pai:
– Coloca o pão direito!
Ainda hoje, quando me sento à mesa e não vejo pão, parece que me falta qualquer coisa. E quando ouço alguém dizer que não come pão porque o pão engorda, dá-me vontade de rir. Nós comíamos pão de manhã à noite, às refeições e fora delas, e nem por isso andávamos mais gordos. A enxada se encarregava de nos derreter as banhas. De modo que frases como a sobredita, é paleio de ociosos. Agarrem-se à enxada e verão como emagrecem.
Nesses duros tempos em que ainda comíamos o pão com o suor do nosso rosto, se deixássemos cair um bocado dele ao chão, ensinaram-nos a erguê-lo e beijá-lo, como que a pedir-lhe desculpa. Hoje o pão anda por aí aos pontapés de toda a gente...
Como tudo isto me faz pena. E que saudades eu tenho do tempo em que o forno cozia.
Quando alguém olhava de longe e exclamava: «O forno de Peireses está a cozer» era como se dissesse «Os de Peireses são felizes...» E nós éramos felizes.
Agora dizem por aí que vão recuperar os fornos públicos. Isso é fácil, porque a maioria deles está intacta. Mais difícil será restituir-lhes a função sócio-cultural que eles outrora desempenharam. Dessa, só nós, os velhos, sabemos falar. Só nós saberemos dizer que a nossa primeira escola foi o lar paterno; a segunda, o forno do povo. Ao calor desses dois fogos sagrados nos fizemos homens. Por falta deles nos vão arrefecendo os ossos.
Um dia destes um amigo meu que ainda mantém uma casa de lavoura a funcionar pelos moldes tradicionais, convidou-me para a matança dos porcos. Estava muita gente e calhou eu ficar à mesa rodeado de velhos. E num momento de silêncio, mais para alimentar o diálogo do que por ignorância ou curiosidade, perguntei se algum deles sabia de alguma aldeia onde o forno ainda cozesse com regularidade.
– Na minha ainda há três ou quatro vizinhos que o utilizam – disse um deles.
– Na minha há muitos anos que está parado – acrescentou outro.
Numa e noutra, lancei o tema de saber com que periodicidade os fornos do povo coziam. E depois de alguma troca de opiniões, chegou-se à conclusão de que isso dependia da capacidade da fornalha e do número de vizinhos.
– Bem – voltei eu – o descanso mensal dum forno nunca poderia ultrapassar os quinze dias, por me parecer esse o período máximo de validade duma broa centeia.
E foi então que um de Padroso se saiu com esta:
– Em Padornelos, se o forno deixasse de cozer durante três dias seguidos, uleavam lá todos de fome como os lobos...1
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 189 e s.)

1 Para quem não conheça Barroso esclareço que Padornelos e Padroso são aldeias vizinhas e que, como normalmente acontece nestes casos, houve sempre entre elas uma certa rivalidade tácita ou declarada. Este dito dum de Padroso traduz precisamente isso.

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