quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A MARELA

Não restam dúvidas de que nasci fadado para a vida monacal. Mas desperdicei a vocação. Faltou-me a têmpera dos anacoretas, género Santo Antão ou São Gerónimo, que resistiram heroicamente às tentações do Demónio. O Porco-Sujo bem arremetia com eles metamorfoseado na figura de belas e lúbricas cortesãs romanas. Mas eles, abroquelados atrás do escudo do jejum, da penitência, da oração, mantinham-se firmes como colunas, que vieram a ser, da igreja eterna.
A mim, bastou aparecer-me na figura duma burra com um guizo, para eu atirar com o cinto da castidade às ortigas e ir atrás dela. Estou arrependido. E, sempre que posso, regresso à tebaida no bom propósito de meditar nos meus erros e arrepender-me deles. Assim aconteceu ontem. Saí da aldeia e embrenhei-me num vale de lameiros e touças de lenha, completamente ermo, quase místico. Místico, no sentido de meditação. Em lugares assim, um homem sente-se por força religioso.
Estava um dia bem pintado, do melhor que o pincel do Outono é capaz. Um sol acariciador, uma temperatura agradável, um silêncio absoluto. Nem um pio de ave, um latido de cão, um orneio de gado, uma flauta de pastor.
A solidão seria completa se, através do silêncio dos campos, não chegasse até mim, crebro, desesperado, lancinante, o mugido maternal duma vaca.
Passadas vinte e quatro horas, ainda esse aflitivo lamento persiste nos meus ouvidos e nas minhas recordações.
Lembro-me. Era pelas noites subsequentes às feiras em Montalegre. As vacas a quem tinham vendido as crias, toda a noite choravam. Era um coro a várias vozes, vindo dos vários pontos da aldeia, duma dor tão magoada e sentida, que a ninguém deixava indiferente. E mulheres havia que, impossibilitadas de dormir, vertiam lágrimas solidárias na calentura das mantas. E se os maridos se riam daquele sentimentalismo piegas, elas retrucavam, abespinhadas:
– Cala-te para aí, coração de pedra dura. Olha que nunca vi um boi a chorar pelas crias...
Como eu gostava de lhes dizer que já vi homens a chorar pelas vacas. E até vacas a chorar pelos homens. Assim mesmo. Quem o diz é o meu cunhado, e eu acredito. Todos nós, os que fomos criados na aldeia, temos uma vaca na nossa vida. A do meu cunhado é a MareIa.
Sempre que vem a talho de foice, o meu cunhado não perde ocasião de falar da sua Marela. Que era alegre, inteligente, bonita, possante. Uma trabalhadeira de marca. Ah! Mas ele também a tratava ali nas palminhas. Verdura, grão, batatas, castanhas. Sempre ali num mimo. O raminho das vacas de Peireses.
Desgraçadamente, a lavoura começou a decair e o meu cunhado resolveu emigrar para a América. E como não podia levar a Marela com ele, vendeu-a para a Aldeia Nova.
Passados anos, veio a férias. E, saudoso dos montes por onde outrora corria as perdizes, foi dar uma volta.
Ao chegar à Lama Grande, encontrou a MareIa. Eram horas de sesta e a vaca estava de pé, muito quieta, a remoer.
O meu cunhado passou-lhe a mão pelo focinho e disse:
– Oh, MareIa! Então tu ainda por aqui andas?
A vaca ouviu, estremeceu e começou a esbagoar lágrimas a fio...
Sempre que isto conta, o meu cunhado leva o lenço aos olhos...

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 187 e s.)

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