quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Desassossego e loucura

EDUARDO PRADO COELHO - segunda-feira, 25 de Setembro de 2006
"Às horas em que a paisagem é uma auréola de Vida, e o sonho é apenas sonhar-se, eu ergui, ó meu amor, no silêncio do meu desassossego, este livro estranho como portões abertos numa casa abandonada." Quem escreveu esta frase magnífica? Fernando Pessoa, em obra atribuída a Bernardo Soares (que ele diz não ser propriamente um heterónimo, mas um "semi-heterónimo"). Esta teria sido a frase que Pessoa imaginara para iniciar o seu "Livro do Desassossego".
Lembro-me ainda, no princípio dos anos 80, quando o meu pai, com mais duas colaboradoras, preparava a primeira edição desta obra extraordinária. Já nessa altura o grande problema era a forma de ordenar os múltiplos fragmentos textuais. Além disso, para além dos passos que Pessoa considerara como fazendo parte dessa obra futura, havia, como hoje continua a haver, os textos sem indicação precisa, que poderiam (ou não) ser incluídos na obra. Segui de perto as dúvidas do meu pai, recomendando, não sei se certa, se erradamente, que criasse manchas temáticas, mas deixasse ao livro uma flutuação própria, evitando qualquer ordem rígida. Mas depois verificou-se que cada edição que aparecia escolhia a sua própria ordem. Alegando que era preciso apresentar uma personalidade que os franceses conheciam mal, Robert Bréchon escolheu uma ordem que partia das informações mais concretas e biográficas para os textos mais especulativos. De qualquer modo, em toda a parte do mundo, os leitores acharam que se tratava de uma espécie de diário fora dos dias do próprio Fernando Pessoa.
Saiu agora uma magnífica edição, concebida por Richard Zenith, do Livro do desassossego (é ele quem propõe a supressão do artigo definido), na Assírio e Alvim (volume cartonado, impressão excelente, mas preço excessivamente caro). Acrescenta-se logo na capa "composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa". Será que terá a repercussão que merece?
Há um estranho fenómeno que não me parece fácil de explicar. O Livro do desassossego é uma das grandes obras da literatura portuguesa, e aquela que melhor representa Fernando Pessoa no estrangeiro. É unanimemente considerada como magistral, e um dos grandes diários do século XX. Contudo, não é muito lida em Portugal, nunca aparece na lista dos livros que se recomenda ler aos alunos, e não é incluída nas antologias escolares (onde encontramos todo o bicho careta). Como se explica esta desatenção? Porque o livro não tem uma estrutura fixa? Porque é obviamente uma obra inacabada, que aumenta ou diminui conforme os seus editores? Porque se acha demasiado difícil? Não sei. Mas valeria a pena reflectir sobre isto de modo a corrigir esta manifesta injustiça.

Professor Universitário

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