EDUARDO
PRADO COELHO - segunda-feira, 25 de Setembro de 2006
"Às horas em que a paisagem é uma
auréola de Vida, e o sonho é apenas sonhar-se, eu ergui, ó meu amor, no
silêncio do meu desassossego, este livro estranho como portões abertos numa
casa abandonada." Quem escreveu esta frase magnífica? Fernando Pessoa, em obra
atribuída a Bernardo Soares (que ele diz
não ser propriamente um heterónimo, mas um "semi-heterónimo"). Esta
teria sido a frase que Pessoa imaginara para iniciar o seu "Livro do
Desassossego".
Lembro-me ainda, no princípio dos anos 80,
quando o meu pai, com mais duas colaboradoras, preparava a primeira edição
desta obra extraordinária. Já nessa altura o grande problema era a forma de
ordenar os múltiplos fragmentos textuais. Além disso, para além dos passos que
Pessoa considerara como fazendo parte dessa obra futura, havia, como hoje
continua a haver, os textos sem indicação precisa, que poderiam (ou não) ser
incluídos na obra. Segui de perto as dúvidas do meu pai, recomendando, não sei
se certa, se erradamente, que criasse manchas temáticas, mas deixasse ao livro
uma flutuação própria, evitando qualquer ordem rígida. Mas depois verificou-se
que cada edição que aparecia escolhia a sua própria ordem. Alegando que era
preciso apresentar uma personalidade que os franceses conheciam mal, Robert Bréchon escolheu uma
ordem que partia das informações mais concretas e biográficas para os textos
mais especulativos. De qualquer modo, em toda a parte do mundo, os leitores acharam
que se tratava de uma espécie de diário fora dos dias do próprio Fernando
Pessoa.
Saiu agora uma magnífica edição, concebida
por Richard Zenith, do Livro do
desassossego (é ele quem propõe a supressão do artigo definido), na Assírio e
Alvim (volume cartonado, impressão excelente, mas preço excessivamente caro).
Acrescenta-se logo na capa "composto por Bernardo Soares, ajudante de
guarda-livros na cidade de Lisboa". Será que terá a repercussão que merece?
Há um estranho fenómeno que não me parece fácil de explicar. O Livro do
desassossego é uma das grandes obras da literatura portuguesa, e aquela que
melhor representa Fernando Pessoa no estrangeiro. É unanimemente considerada
como magistral, e um dos grandes diários do século XX. Contudo, não é muito
lida em Portugal, nunca aparece na lista dos livros que se recomenda ler aos
alunos, e não é incluída nas antologias escolares (onde encontramos todo o
bicho careta). Como se explica esta desatenção? Porque o livro não tem uma
estrutura fixa? Porque é obviamente uma obra inacabada, que aumenta ou diminui
conforme os seus editores? Porque se acha demasiado difícil? Não sei. Mas
valeria a pena reflectir sobre isto de modo a corrigir esta manifesta injustiça.
Professor Universitário
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