Estive agora a pensar
nas insignificâncias que os Senhores do Mundo mobilizam e empregam por sistema
e subtileza grosseira, para corromper dia a dia, implacáveis, o Sonho de Transformação
da Vida. As aspas, por exemplo. Que bagatela! Dois risquinhos apenas. Mas esses
risquinhos, de um lado e de outro na palavra, chegam para esvaziá-la ou
atribuir-lhe nova intenção indefinida – suspeita sempre.
Se não vejam:
«voluntários» difere de voluntários. «Libertadores» não é a mesma coisa do que
libertadores, etc. E o leitor desatento mal repara na mudança que, no entanto,
envenena o que existe de mais gravemente rico no espírito humano: a esperança.
Não conheço nenhum
livro que estude estas manobras à primeira vista sem importância, mas que tanto
influem na psicologia política pública, na sua teimosia de gota de água... E é
pena – para pôr de sobreaviso os milhões de bichos que meia dúzia de Donos das
Coisas consegue açaimar e dominar, graças a esta rede de estratagemas menores,
mas enleantes.
*
Por exemplo: a palavra
paraíso. Com aspas. Assim: «paraíso». Desde que me conheço as vezes que tem
sido utilizada como arma de mentira! Até na pequenina revolução de superfície portuguesa,
onde os reaccionários inventaram o falso «slogan» do «bacalhau a pataco».
«Paraíso»... Como se
algum revolucionário consciente pudesse prometer o paraíso a breve prazo!
O inferno, sim. Sem
aspas.
O inferno onde, pouco
a pouco, se gera o espanto da esperança. (Gera ou mata.)
*
Não há nada que mais
me ofenda do que a Voz com olhos de choro dos recitadores e dos
cantores. (Por que razão Os Amores do Poeta, por exemplo,
hão-de ser sempre gemidos com soluços na garganta?) Esses cavalheiros
estragadores de versos não percebem que as palavras, repassadas de lágrimas convencionais,
amolecem, ficam como papas. E não comovem ninguém. Constipam, talvez.
Sempre que os ouço,
apetece-me corrê-los a pontapé no eu e obrigá-los a sair pela porta fechada da
4.ª dimensão.
José Gomes Ferreira, em DIAS COMUNS – I. PASSOS EFÉMEROS –
Diário
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