domingo, 1 de setembro de 2013

1 de Setembro [1989]

Estive agora a pensar nas insignificâncias que os Senhores do Mundo mobilizam e empregam por sistema e subtileza grosseira, para corromper dia a dia, implacáveis, o Sonho de Transformação da Vida. As aspas, por exemplo. Que bagatela! Dois risquinhos apenas. Mas esses risquinhos, de um lado e de outro na palavra, chegam para esvaziá-la ou atribuir-lhe nova intenção indefinida – suspeita sempre.
Se não vejam: «voluntários» difere de voluntários. «Libertadores» não é a mesma coisa do que libertadores, etc. E o leitor desatento mal repara na mudança que, no entanto, envenena o que existe de mais gravemente rico no espírito humano: a esperança.
Não conheço nenhum livro que estude estas manobras à primeira vista sem importância, mas que tanto influem na psicologia política pública, na sua teimosia de gota de água... E é pena – para pôr de sobreaviso os milhões de bichos que meia dúzia de Donos das Coisas consegue açaimar e dominar, graças a esta rede de estratagemas menores, mas enleantes.
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Por exemplo: a palavra paraíso. Com aspas. Assim: «paraíso». Desde que me conheço as vezes que tem sido utilizada como arma de mentira! Até na pequenina revolução de superfície portuguesa, onde os reaccionários inventaram o falso «slogan» do «bacalhau a pataco».
«Paraíso»... Como se algum revolucionário consciente pudesse prometer o paraíso a breve prazo!
O inferno, sim. Sem aspas.
O inferno onde, pouco a pouco, se gera o espanto da esperança. (Gera ou mata.)
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Não há nada que mais me ofenda do que a Voz com olhos de choro dos recitadores e dos cantores. (Por que razão Os Amores do Poeta, por exemplo, hão-de ser sempre gemidos com soluços na garganta?) Esses cavalheiros estragadores de versos não percebem que as palavras, repassadas de lágrimas convencionais, amolecem, ficam como papas. E não comovem ninguém. Constipam, talvez.
Sempre que os ouço, apetece-me corrê-los a pontapé no eu e obrigá-los a sair pela porta fechada da 4.ª dimensão.


José Gomes Ferreira, em DIAS COMUNS – I. PASSOS EFÉMEROS – Diário

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