sábado, 28 de setembro de 2013

Coimbra, 28 de Setembro de 1975

É uma pena que a barca de Caronte regresse sempre vazia ao cais da partida, e Ruben A. não possa voltar por momentos ao reino dos vivos para comentar a sua própria morte, anunciada hoje em tipo miúdo na vala necrológica dos jornais. É que ninguém melhor do que ele, a propósito dessa ausência de si mesmo no palco da existência, saberia transmitir-nos o que há de absurdo, de estúpido e de pungente no desaparecimento de certas criaturas que trazem à indiferença dos dias a singularidade de um estilo desabusado, emblematicamente vivido. Por ser precisamente uma delas, um desses entes raros e insólitos que nunca deveriam deixar-nos desamparados na pobreza da nossa vulgaridade, e porque tinha o humor negro, a lucidez e a fantasia que os imortais às vezes outorgam distraidamente aos mortais, era numa das suas Páginas que ficavam bem estas lágrimas, que só ali correriam eternamente salgadas e bufas, de uns olhos ao mesmo tempo irónicos e cordiais, bárbaros e civilizados, cândidos e demoníacos, sonâmbulos e acordados. Juiz póstumo da personagem que foi, sem lhe poder corrigir um gesto sequer, mal se imagina a que profundidades desceria a sua análise implacável, e que sibilina e justa sentença lavraria no fim. Mas o destino gosta pouco de se ver perspectivado pelos interessados. Mormente quando eles são senhores soberanos da palavra. E O Mundo À Minha Procura fica assim privado de um remate que nenhuma outra mão, desgraçadamente, lhe pode dar – remate inteligente e melancólico, apenas possível no espírito de quem acreditava sinceramente na glória, mas humanamente lhe sabia assobiar nas horas triunfais.
Miguel Torga: DIÁRIO (XII)

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