É uma pena
que a barca de Caronte
regresse sempre vazia ao cais da partida, e Ruben
A. não possa voltar por momentos ao reino dos vivos para comentar a sua
própria morte, anunciada hoje em tipo miúdo na vala necrológica dos jornais. É
que ninguém melhor do que ele, a propósito dessa ausência de si mesmo no palco
da existência, saberia transmitir-nos o que há de absurdo, de estúpido e de
pungente no desaparecimento de certas criaturas que trazem à indiferença dos
dias a singularidade de um estilo desabusado, emblematicamente vivido. Por ser
precisamente uma delas, um desses entes raros e insólitos que nunca deveriam
deixar-nos desamparados na pobreza da nossa vulgaridade, e porque tinha o humor
negro, a lucidez e a fantasia que os imortais às vezes outorgam distraidamente
aos mortais, era numa das suas Páginas
que ficavam bem estas lágrimas, que só ali correriam eternamente salgadas e
bufas, de uns olhos ao mesmo tempo irónicos e cordiais, bárbaros e civilizados,
cândidos e demoníacos, sonâmbulos e acordados. Juiz póstumo da personagem que
foi, sem lhe poder corrigir um gesto sequer, mal se imagina a que profundidades
desceria a sua análise implacável, e que sibilina e justa sentença lavraria no
fim. Mas o destino gosta pouco de se ver perspectivado pelos interessados.
Mormente quando eles são senhores soberanos da palavra. E O
Mundo À Minha Procura fica assim privado de um remate que nenhuma outra
mão, desgraçadamente, lhe pode dar – remate inteligente e melancólico, apenas
possível no espírito de quem acreditava sinceramente na glória, mas humanamente
lhe sabia assobiar nas horas triunfais.
Miguel
Torga: DIÁRIO (XII)
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