Acaba o mês, acaba a
«hora de Verão». E começa, pois, uma nova hora. É bom renovarmo-nos com o que
se renova porque nos dá a ilusão de recomeço. Assim se suspende por um pouco a
certeza de que a renovação é um reenvelhecer. É a «hora do Inverno», de nos
comprimirmos mais no nada que nos vai sendo. No tempo em que dava aulas o
começo de um novo ano era realmente reinventar-me outro. Novas turmas, novo
horário, muitos novos colegas. E tudo à nossa volta tinha um ar intenso de uma
estranha claridade como de um amanhecer. Quando estávamos em Évora escolhíamos
uma praia para o mês de Agosto, antes de nos podermos fixar numa pensão da Praia
da Rocha. Era uma pensão muito procurada e houve assim que ter uma vaga
para ficar por nossa conta. Então o mês de Setembro era difícil de cumprir, na
espera quase inquietante de que as aulas recomeçassem e com elas a alegria de
recomeçarmos a nossa rotina. Depois veio Lisboa e a casa de Fontanelas que
estendia a praia até ao fim do mês. De todo o modo, regressar às aulas era
sempre uma festa, apesar da fadiga dela como de todas as festas. Mas agora não
temos recomeço de nada e há que inventá-lo na sua alegria possível, nem que
seja no seu absurdo de ser o escuro de uma «hora de Inverno». Talvez por isso
eu sonho tanto com o liceu, como ainda esta noite. Mas no sonho há mais verdade
porque ele é quase invariavelmente o da procura da sala de aulas num labirinto
de corredores e a aflição subsequente de dar uma falta.
*
Às vezes lembro-me dos
que combateram o comunismo e foram cobertos de infâmia e que ninguém mais
recorda e muito menos «reabilita». Quem se lembra hoje de um Karvtchenko,
autor do Escolhi a Liberdade, que foi para mim o primeiro aviso de que o
paraíso não morava a Leste e foi submetido a um processo judicial, movido pelo
PC francês? Quem se lembra entre nós de um Chico da Cuf que nos ia instruindo
sobre o que vivera na URSS e o que se lá ia passando, pois que lia os jornais russos?
Quem fala do que denunciou primeiro os campos de concentração russos (Victor
Serge) que faziam «pendant» com os faladíssimos nazis? Isto para não falar
nos milhões de vítimas do comunismo e que o silêncio recobriu. É fabuloso
pensar-se na massa imensa de tais vítimas e dos que defenderam e deram a sua
vida física e intelectual a esse grande mito do nosso século – e contrapor-se
depois esse mundo gigantesco ao vazio que o movimentava. Jamais em toda a
história humana houve uma tal desproporção em que de um lado estava tudo e do outro
não havia nada. A história do homem é a das suas utopias. Mas de todas elas
restou alguma coisa que as tornava menos utópicas pelo resíduo que ficava e era
real. Mas o comunismo foi uma utopia-limite e assim o que ficou dela foi a negação
total dela. Quem muito abarca pouco aperta, diz o povo. Mas desta vez abarcou-se
tudo. E por isso não se apertou nada.
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