segunda-feira, 2 de setembro de 2013

2 – Setembro (domingo). [1990]

Como é que os outros não vêem? Ou serei eu mesmo um tarado? Porque a coisa mete-se pelos olhos dentro. Há hoje apenas um problema que é o de o homem bastar-se a si próprio, viver em harmonia consigo dentro dos seus estreitos limites. Mais nada, mais nada. A solução religiosa são restos a desaparecer ou o desespero de quem se não resigna. Mas como admitir-se indefinidamente que se é uma toupeira? Onde a religião parece ainda funcionar, como no Islão, serve apenas aos ambiciosos de estratagema político. O tiranete do Iraque cita o Corão mas é evidente que não acredita nele. Mas as massas talvez acreditem e é com elas que tem de abastecer-se. A guerra hoje, se não é a expressão clara de interesses económicos, é um processo de fuga pelo aventureirismo. Porque o risco é um prazer do homem, desde o jogo à loucura de se atravessar o Atlântico a remos. Já houve. E a guerra é um bom meio de se desafiar o destino. Mas porque os aventureiros são poucos, um exército é difícil organizá-lo. Na actual ou iminente guerra do Golfo, a Europa encolhe-se porque não tem uma ideologia a mobilizá-la. E é exactamente por isso que ela vendeu aos árabes as armas da destruição e vende agora aos povos ameaçados as contra-armas para se defenderem. A ambição económica foi sempre a grande motivação para as guerras. Mas era isso encoberto com a pureza de uma ideologia, genericamente religiosa, como o soube o comunismo que fez do Partido um Absoluto, ou o sabem os que se julgam oprimidos por uma injustiça e desejam libertar-se dela. E como haverá sempre injustiças ao que se julgue oprimido, haverá sempre guerras circunstanciais. Mas o problema do homem em si ficará sempre em aberto e a expressão final da guerra será o desespero ou o jogo do aventureiro. A América defende os seus interesses ou ambições económicas. Mas é altamente problemático que os combatentes interiorizem uma guerra como sua. A América, de resto, é um país atrasado em relação ao racionalismo mortífero da Europa e isso pode dar-lhe uma ajuda. É curioso, aliás, que os inimigos ideológicos tradicionais da América hesitem agora na sua condenação. Porque simplesmente a Rússia (não já a URSS...) se abstém na condenação e dá mesmo o seu apoio discreto. Mas estes ideólogos anti-americanos parecem esquecer que o triunfo do Iraque seria amanhã a ambição imperialista que substituiria o imperialismo da outra. Os defensores da libertação dos países africanos – como eu sou – nada dizem dos tiranetes que imediatamente se entronizaram no poder com uma violência maior que a dos que os oprimiam. Em que é que um Idi-Amin ou um Bukasa, ou mesmo um Mobutu, foram ou são amantes da liberdade e da justiça? Nós amamos uma e outra, mas devemos saber que os promotores da libertação não era a liberdade que amavam mas a sua ambição. Ser inimigo da América em nome da justiça humana deve implicar a certeza de que os que se lhe opõem e ela combate serão amanhã os seus substitutos nos mesmos desígnios. Os árabes não pretendem apenas combater o imperialismo americano mas recompor o seu império de mil anos. A besta do Hussein cometeu já o crime de anexar o Koweit – e foi por isso que a maioria dos países árabes estão contra ele. Mas se triunfar, ele estenderá o seu domínio sobre outros países árabes, a começar pela Arábia Saudita. Curioso é que se não repare muito no facto de outros tiranetes quererem chamar a si o poder e o mandato de chefes de um novo império árabe. E é por isso que o Kadhafi, que teve o mesmo sonho, se mantém reservado em face do seu concorrente que é o Hussein.
Mas desviei-me um pouco. O que eu queria dizer era que estas guerras acidentais, mesmo com grande contabilidade de mortos, são apenas um intermezzo ou até um divertissement pascaliano, em face do grande problema de hoje que é o niilismo total e a necessária reorganização do homem nos seus estritos limites. Aliás, o célebre texto do Fukuyama (que eu também comentei) não foi assim uma idiotice como o meu amigo Ed. Lourenço afirmou ou sugeriu. O essencial desse texto está certo. Só o que não está certo é supor que a morte das ideologias envolveria o fim de todas as guerras. Porque a guerra é intrínseca ao homem desde as lutas dos clubes ou dos bairros. Mas uma guerra geral, só a ideologia a pode alimentar. Ora mesmo o islamismo é improvável conglomerar-se num todo para uma guerra que só poderia ter como inimigo o Ocidente, desprovido já de qualquer ideologia, mesmo a do nacionalismo. Mas além de que há outros Rushdie em fila de espera, há todo o Ocidente que não poderia ficar-se como mero espectador. E no caso do Golfo já se manifestou contra o Hussein, decerto porque bem sabe que o seu triunfo não se ficaria por ali. Além de que o petróleo também mata a sede do Japão e da China.
De todo o modo, o Mundo inteiro está suspenso do desfecho da crise. Os comentadores são quase unânimes em que a guerra é inevitável. E o nosso imaginário aterra-se com o terrível disso. Será talvez essa a razão por que eu ainda não acredito. Mas também ninguém acredita na sua morte – e morre mesmo. Nasci durante a Primeira Guerra, fiz-me gente durante a de Espanha e a Segunda, custa-me a crer que morra com a Terceira. Mas a vida é inverosímil e o mais incrível é a sua medida, ou seja a sua verdade.

Vergílio Ferreira: conta-corrente / nova série / II [1990]

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