Como é que os outros
não vêem? Ou serei eu mesmo um tarado? Porque a coisa mete-se pelos olhos
dentro. Há hoje apenas um problema que é o de o homem bastar-se a si próprio,
viver em harmonia consigo dentro dos seus estreitos limites. Mais nada, mais
nada. A solução religiosa são restos a desaparecer ou o desespero de quem se não
resigna. Mas como admitir-se indefinidamente que se é uma toupeira? Onde a religião
parece ainda funcionar, como no Islão, serve apenas aos ambiciosos de
estratagema político. O tiranete do Iraque cita o Corão mas é evidente que não
acredita nele. Mas as massas talvez acreditem e é com elas que tem de
abastecer-se. A guerra hoje, se não é a expressão clara de interesses
económicos, é um processo de fuga pelo aventureirismo. Porque o risco é um
prazer do homem, desde o jogo à loucura de se atravessar o Atlântico a remos.
Já houve. E a guerra é um bom meio de se desafiar o destino. Mas porque os
aventureiros são poucos, um exército é difícil organizá-lo. Na actual ou
iminente guerra do Golfo, a Europa encolhe-se porque não tem uma ideologia a
mobilizá-la. E é exactamente por isso que ela vendeu aos árabes as armas da
destruição e vende agora aos povos ameaçados as contra-armas para se defenderem.
A ambição económica foi sempre a grande motivação para as guerras. Mas era isso
encoberto com a pureza de uma ideologia, genericamente religiosa, como o soube
o comunismo que fez do Partido um Absoluto, ou o sabem os que se julgam
oprimidos por uma injustiça e desejam libertar-se dela. E como haverá sempre
injustiças ao que se julgue oprimido, haverá sempre guerras circunstanciais.
Mas o problema do homem em si ficará sempre em aberto e a expressão final da
guerra será o desespero ou o jogo do aventureiro. A América defende os seus
interesses ou ambições económicas. Mas é altamente problemático que os combatentes
interiorizem uma guerra como sua. A América, de resto, é um país
atrasado em relação ao racionalismo mortífero da Europa e isso pode dar-lhe uma
ajuda. É curioso, aliás, que os inimigos ideológicos tradicionais da América
hesitem agora na sua condenação. Porque simplesmente a Rússia (não já a
URSS...) se abstém na condenação e dá mesmo o seu apoio discreto. Mas estes
ideólogos anti-americanos parecem esquecer que o triunfo do Iraque seria amanhã
a ambição imperialista que substituiria o imperialismo da outra. Os defensores
da libertação dos países africanos – como eu sou – nada dizem dos tiranetes que
imediatamente se entronizaram no poder com uma violência maior que a dos que os
oprimiam. Em que é que um Idi-Amin
ou um Bukasa, ou mesmo um Mobutu,
foram ou são amantes da liberdade e da justiça? Nós amamos uma e outra, mas
devemos saber que os promotores da libertação não era a liberdade que amavam mas
a sua ambição. Ser inimigo da América em nome da justiça humana deve implicar a
certeza de que os que se lhe opõem e ela combate serão amanhã os seus
substitutos nos mesmos desígnios. Os árabes não pretendem apenas combater o
imperialismo americano mas recompor o seu império de mil anos. A besta do Hussein
cometeu já o crime de anexar o Koweit – e foi por isso que a maioria dos países
árabes estão contra ele. Mas se triunfar, ele estenderá o seu domínio sobre
outros países árabes, a começar pela Arábia
Saudita. Curioso é que se não repare muito no facto de outros tiranetes
quererem chamar a si o poder e o mandato de chefes de um novo império árabe. E
é por isso que o Kadhafi,
que teve o mesmo sonho, se mantém reservado em face do seu concorrente que é o
Hussein.
Mas desviei-me um
pouco. O que eu queria dizer era que estas guerras acidentais, mesmo com grande
contabilidade de mortos, são apenas um intermezzo ou até um divertissement
pascaliano, em face do grande problema de hoje que é o niilismo total e a
necessária reorganização do homem nos seus estritos limites. Aliás, o célebre
texto do Fukuyama
(que eu também comentei) não foi assim uma idiotice como o meu amigo Ed.
Lourenço afirmou ou sugeriu. O essencial desse texto está certo. Só o que
não está certo é supor que a morte das ideologias envolveria o fim de todas as
guerras. Porque a guerra é intrínseca ao homem desde as lutas dos clubes ou dos
bairros. Mas uma guerra geral, só a ideologia a pode alimentar. Ora mesmo o
islamismo é improvável conglomerar-se num todo para uma guerra que só poderia
ter como inimigo o Ocidente, desprovido já de qualquer ideologia, mesmo a do
nacionalismo. Mas além de que há outros Rushdie
em fila de espera, há todo o Ocidente que não poderia ficar-se como mero
espectador. E no caso do Golfo já se manifestou contra o Hussein, decerto porque
bem sabe que o seu triunfo não se ficaria por ali. Além de que o petróleo
também mata a sede do Japão e da China.
De todo o modo, o
Mundo inteiro está suspenso do desfecho da crise. Os comentadores são quase
unânimes em que a guerra é inevitável. E o nosso imaginário aterra-se com o
terrível disso. Será talvez essa a razão por que eu ainda não acredito. Mas também
ninguém acredita na sua morte – e morre mesmo. Nasci durante a Primeira Guerra,
fiz-me gente durante a de Espanha e a Segunda, custa-me a crer que morra com a Terceira.
Mas a vida é inverosímil e o mais incrível é a sua medida, ou seja a sua
verdade.
Sem comentários:
Enviar um comentário