Interrogo-me muitas vezes sobre o que será uma crónica de jornal. No meio
das dispersas solicitações e emoções de cada dia, arrastado, como toda a gente,
no rio da vida tumultuosamente correndo fora de si e dentro de si, revoltado, enternecido,
surpreendido, ou tão-só, também ele, vencido ou resignado, é natural que o
cronista em certos dias se detenha e que os seus olhos e o seu coração (e as
suas palavras) hesitem: que escrever e para quê? Em muitas ocasiões, diante do
papel ou do perplexo «écran» do computador, me pergunto isso mesmo: que
escrever e para quê? E cada uma destas crónicas é talvez uma resposta – indecisa
e inconclusa, eu sei – a essa pergunta elementar.
Os jornais cansam-me: o primeiro-ministro faz promessas num comício; o
presidente passa férias no Algarve; os partidos da oposição promovem
conferências de Imprensa; o secretário de Estado da Cultura diz que não disse e
o ministro das Finanças não diz; os maus bombardeiam Sarajevo e matam os bons;
o Papa convalesce de uma operação; um grupo «rock» canta em Lisboa... Estou
sentado na sala, olhando o gato que brinca aos meus pés, e penso que nenhuma
coisa que possa vir em jornais é tão séria e tão essencial como o seu grave e
ruidoso conflito com o saco de plástico.
Tenho tentado transformar os monótonos títulos de todas as primeiras
páginas em decassílabos e compor com eles díspares inventários surrealistas. A
verdade é que um verso (fosse eu capaz de escrever um bom verso!), ou um poema,
têm certamente mais e mais óbvias hipóteses de durar do que um
primeiro-ministro ou um presidente! Verifique você mesmo, leitor: faça as
contas aos primeiros-ministros e aos presidentes – das centenas que têm sido,
ao longo dos tempos e dos lugares, «manchette» nas gazetas e nos jornais – de
que é ainda capaz de se lembrar, e compare-os com os versos, os poemas, os
poetas, que – mesmo sem ser um letrado, mesmo que apenas vagamente – lhe virão
à cabeça ...
Outro dia caiu-me nas mãos um velho exemplar do Diário de Notícias, também
ele cheio de nomes de gente importante (ministros, deputados, militares,
comerciantes), de tragédias, de «faits divers». E, todavia, o único
acontecimento que, em todo o jornal, me dizia ainda alguma coisa, umas poucas
dezenas de anos depois, era uma pequena nota de duas ou três linhas numa página
interior: um certo «sr. Mário de Sá-Carneiro»
tinha publicado um livro de versos! Daqui a 50 ou 100 anos, o mais que algum
rato de Universidade conseguirá provavelmente dizer sobre Cavaco Silva, depois
de ter vasculhado em todos os arquivos, é que foi um primeiro-ministro do tempo
de Eugénio
de Andrade...
As páginas dos jornais são feitas da matéria da morte e do esquecimento. E
as crónicas de jornal, filhas de Cronos, o tempo que passa, como também nós,
homens que passamos, são pobres seres insubstanciais e irrisórios,
provavelmente sem sentido, provavelmente inúteis. Que escrever, pois? E para
quê?
Mas da Rua de Santo Ildefonso e da Rua de Ceuta chegam-me cartas de amigos;
outra, comovente (eu é que sei!), chega-me da Rua de Nove de Abril; um
desconhecido aborda-me no café; outro manda-me um velho recorte e uma
fotografia; outro ainda escreve-me longamente falando das frágeis e inseguras
palavras de que um dia a crónica aqui se fez e que irremediavelmente se perderam.
E eu penso: talvez, afinal, alguma forma de efémera eternidade possa (quem
sabe?) animar a furtiva vida de um jornal, um breve reflexo, uma fugaz emoção,
possa, com um pouco de sorte, pulsar na notícia, na reportagem, na crónica e, por
um instante, bater unanimemente no coração de outro homem, uma anónima identidade
misteriosamente gerar-se entre desconhecidos pelo milagre de um verbo ou de um
adjectivo, um clandestino sangue transbordar da página impressa e contagiar a
inúmera vida que, lá fora, incertamente vive.
O gato, cansado de brincar, adormece no parapeito da janela. E a crónica,
subitamente e injustificadamente feliz, começa então a escrever-se em mim.
Manuel António Pina - JN, 02/09/1992