segunda-feira, 30 de setembro de 2013

EXPEDIÇÃO À SEGURANÇA SOCIAL (CAPÍTULO I)

As minhas aventuras no Estado começaram com a encomenda de um trabalho. Quando o acabei, ao trabalho, mal eu sabia que os trabalhos estavam só a começar!
Chegada a altura de pagar, perguntou-me o Estado: «Deves alguma coisa à Segurança Social?». «Não», respondi eu. E o Estado: «O que tu dizes não interessa, que fale a Segurança Social ou daqui não levas nada...»
Foi assim que me pus, fermoso e não seguro, a caminho da Segurança Social. Depois de horas de espera, primeiro para arranjar um requerimento, depois para o entregar, a Segurança Social informou-me finalmente (seria impressão minha, ou a Segurança Social soltou um risinho de gozo?) que, dentro de 10 dias, diria de sua justiça. Passaram 10 dias, passaram 15, passou um mês, passou mês e meio... Telefonei para a Segurança Social. À volta da nau rodei três vezes, três vezes rodei imundo e grosso, e soube ao fim de rodar três vezes que era melhor telefonar de manhã, «porque elas, de tarde, desligam o telefone». Desde então tenho passado as manhãs a telefonar para a Segurança Social. Os argonautas não telefonaram metade das vezes para chegarem ao Velo de Oiro! Porque se, de tarde, «elas» desligam o telefone, de manhã não atendem...
(Não perca na próxima crónica novos e emocionantes episódios...)

Manuel António Pina: JN, 30/09/2005

30 – Setembro (domingo).

Acaba o mês, acaba a «hora de Verão». E começa, pois, uma nova hora. É bom renovarmo-nos com o que se renova porque nos dá a ilusão de recomeço. Assim se suspende por um pouco a certeza de que a renovação é um reenvelhecer. É a «hora do Inverno», de nos comprimirmos mais no nada que nos vai sendo. No tempo em que dava aulas o começo de um novo ano era realmente reinventar-me outro. Novas turmas, novo horário, muitos novos colegas. E tudo à nossa volta tinha um ar intenso de uma estranha claridade como de um amanhecer. Quando estávamos em Évora escolhíamos uma praia para o mês de Agosto, antes de nos podermos fixar numa pensão da Praia da Rocha. Era uma pensão muito procurada e houve assim que ter uma vaga para ficar por nossa conta. Então o mês de Setembro era difícil de cumprir, na espera quase inquietante de que as aulas recomeçassem e com elas a alegria de recomeçarmos a nossa rotina. Depois veio Lisboa e a casa de Fontanelas que estendia a praia até ao fim do mês. De todo o modo, regressar às aulas era sempre uma festa, apesar da fadiga dela como de todas as festas. Mas agora não temos recomeço de nada e há que inventá-lo na sua alegria possível, nem que seja no seu absurdo de ser o escuro de uma «hora de Inverno». Talvez por isso eu sonho tanto com o liceu, como ainda esta noite. Mas no sonho há mais verdade porque ele é quase invariavelmente o da procura da sala de aulas num labirinto de corredores e a aflição subsequente de dar uma falta.
*
Às vezes lembro-me dos que combateram o comunismo e foram cobertos de infâmia e que ninguém mais recorda e muito menos «reabilita». Quem se lembra hoje de um Karvtchenko, autor do Escolhi a Liberdade, que foi para mim o primeiro aviso de que o paraíso não morava a Leste e foi submetido a um processo judicial, movido pelo PC francês? Quem se lembra entre nós de um Chico da Cuf que nos ia instruindo sobre o que vivera na URSS e o que se lá ia passando, pois que lia os jornais russos? Quem fala do que denunciou primeiro os campos de concentração russos (Victor Serge) que faziam «pendant» com os faladíssimos nazis? Isto para não falar nos milhões de vítimas do comunismo e que o silêncio recobriu. É fabuloso pensar-se na massa imensa de tais vítimas e dos que defenderam e deram a sua vida física e intelectual a esse grande mito do nosso século – e contrapor-se depois esse mundo gigantesco ao vazio que o movimentava. Jamais em toda a história humana houve uma tal desproporção em que de um lado estava tudo e do outro não havia nada. A história do homem é a das suas utopias. Mas de todas elas restou alguma coisa que as tornava menos utópicas pelo resíduo que ficava e era real. Mas o comunismo foi uma utopia-limite e assim o que ficou dela foi a negação total dela. Quem muito abarca pouco aperta, diz o povo. Mas desta vez abarcou-se tudo. E por isso não se apertou nada.

Vergílio Ferreira: conta-corrente / nova série / II [1990]

sábado, 28 de setembro de 2013

Orquídea

Orquídea da espécie Orchis tridentata.  (definição 790 × 1 024)
Orquídea da espécie Orchis tridentata.
(resolução original: 790 × 1 024)

Coimbra, 28 de Setembro de 1975

É uma pena que a barca de Caronte regresse sempre vazia ao cais da partida, e Ruben A. não possa voltar por momentos ao reino dos vivos para comentar a sua própria morte, anunciada hoje em tipo miúdo na vala necrológica dos jornais. É que ninguém melhor do que ele, a propósito dessa ausência de si mesmo no palco da existência, saberia transmitir-nos o que há de absurdo, de estúpido e de pungente no desaparecimento de certas criaturas que trazem à indiferença dos dias a singularidade de um estilo desabusado, emblematicamente vivido. Por ser precisamente uma delas, um desses entes raros e insólitos que nunca deveriam deixar-nos desamparados na pobreza da nossa vulgaridade, e porque tinha o humor negro, a lucidez e a fantasia que os imortais às vezes outorgam distraidamente aos mortais, era numa das suas Páginas que ficavam bem estas lágrimas, que só ali correriam eternamente salgadas e bufas, de uns olhos ao mesmo tempo irónicos e cordiais, bárbaros e civilizados, cândidos e demoníacos, sonâmbulos e acordados. Juiz póstumo da personagem que foi, sem lhe poder corrigir um gesto sequer, mal se imagina a que profundidades desceria a sua análise implacável, e que sibilina e justa sentença lavraria no fim. Mas o destino gosta pouco de se ver perspectivado pelos interessados. Mormente quando eles são senhores soberanos da palavra. E O Mundo À Minha Procura fica assim privado de um remate que nenhuma outra mão, desgraçadamente, lhe pode dar – remate inteligente e melancólico, apenas possível no espírito de quem acreditava sinceramente na glória, mas humanamente lhe sabia assobiar nas horas triunfais.
Miguel Torga: DIÁRIO (XII)

O CRIME DE RASTANI

O que o corrector da Bolsa de Londres Alessio Rastani disse na BBC e lhe granjeou notoriedade instantânea foi o que toda a gente sabia mas tinha medo de ouvir: os Estados pouco podem fazer quanto à presente crise porque «quem governa o Mundo é o Goldman Sachs [banco que esteve, em 2007, na origem da crise financeira internacional] e o Goldman Sachs não está interessado no resgate do euro».
E mais: euro e bolsas vão afundar-se e milhões de pessoas perder as suas poupanças para os bolsos concretos dos abstractos «mercados» e a crise e miséria de muitos constitui uma grande oportunidade de enriquecimento de uns poucos, como os venturosos «25 mais ricos de Portugal», cujas fortunas cresceram, com os despedimentos mais a desgraça generalizada do país, para 17,4 mil milhões.
O crime assacado a Rastani foi o de défice de hipocrisia pois há coisas que os lobos pensam e fazem mas não dizem aos cordeiros. Falou como «porta-voz dos mercados» e não escondeu as intenções: «O nosso [especuladores financeiros] trabalho é ganhar dinheiro com [a crise]. Todas as noites sonho com mais uma recessão».
Talvez façam assim mais sentido justificações como «A troika exige» dadas pelos serventuários locais dos «mercados» para as políticas recessivas em curso e o «aviso» deixado pelo secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro aos pagantes do costume de que a recessão será, em 2012, ainda mais profunda que o previsto.

Manuel António Pina: JN, 28/09/2011 

28 de Setembro

Morte de André Breton – sem dúvida um dos homens-chave do nosso tempo que ajudou, como nenhum outro, a dar ao século xx (no lado de cá da burguesia resistente) a característica racionalista-irracionalista que o distingue.
Mas, daqui a alguns anos, não se arriscará Breton a ficar na Memória Escrita dos homens como um inventor de extravagâncias?
A História é, muitas, vezes a vingança da Razão Média.

José Gomes Ferreira, em DIAS COMUNS – I. PASSOS EFÉMEROS – Diário [1966]

O inferno

EDUARDO PRADO COELHO: quinta-feira, 28 de Setembro de 2006
Vou contar tudo desde o princípio. Anteontem fiz a minha crónica habitual e preparei-me, como faço há vários anos, para mandar tudo pela Internet. É só carregar, e limpinho! E então apareceu uma indicação a dizer que não estava ligado à Internet. Como é que estas coisas acontecem, é para mim um mistério. Na véspera estava tudo bem e alguns demónios informáticos introduzem-se no meu computador e produzem uma incompreensível desordem. De manhã, mesmo ao raiar da aurora, já nada era como dantes. A gente começa a carregar teclas e as coisas só tendem a piorar. Pavoroso.
Mas no meu caderninho dedicado a todos os endereços do mundo encontrei netcabo - apoio ao cliente. Tinha depois um daqueles sistemas em que se a gente quer fazer uma assinatura carrega um, se quer apoio técnico carrega dois, etc. Passei para o apoio técnico e, se bem me lembro, foi aí que encontrei mais uma indicação que dizia que se eu estava no Norte devia carregar um, se estava no centro devia carregar dois, se estava no Sul devia carregar três, o que fiz. Resultou. Apareceu um senhor que perguntou o meu nome, o meu número de cliente, e o seu interesse por mim foi crescendo: quis saber a morada, o número do bilhete de identidade, embora as medidas da cintura tenham ficado certamente para mais tarde (também não são grande coisa). Depois desta identificação rigorosa, perguntou-me qual era o meu problema: expliquei-lhe que estava sem Internet, e então ele recomendou-me aquela receita mágica que consiste em desligar os cabos sucessivamente e por vezes colocar a ponta que estava de um lado no outro. Tentou que eu desligasse o modem da electricidade, mas expliquei-lhe que não conseguia: só desfazendo o modem ou arrancando um pedaço de parede.
Foi nessa altura que quis saber qual era o meu tipo de modem, que cor tinha (é cremezinho encardido), se era quadrado ou rectangular e que números tinha na parte debaixo. Lá tentei debruçar-me sobre as entranhas do bicho e recitar um certo número de números e letras. Concluiu o senhor que aquilo ultrapassava o seu âmbito de competência e que era melhor que me enviassem um técnico, o que só poderia ser feito no system care. Lá fui e apareceu um novo senhor, cujo nome me comunicou, e fez todas as perguntas que o anterior havia feito. Chegou depois à conclusão de que era preciso fazer um certo tipo de operações: vai à maçã, carrega localização, aí aparecem preferências do sistema, escolhe essa opção, depois vê o seu IP (aqui a minha alma arrepanhou-se). Mas consegui. Nessa altura o senhor verificou que a minha zona estava em manutenção da Internet e só hoje poderia ter qualquer conclusão. Hoje telefonei e recomeçámos: todas as perguntas, todas as opções possíveis, até que ao cabo de hora e meia o telefone, já exausto como eu, desligou-se. Liguei de novo para o system care, mas apareceu agora um outro senhor e preparava-se já para a mesma odisseia quando lhe disse o nome do senhor anterior e disse que era com ele que pretendia falar. Disse-me que não podia fazer transferências. Expliquei-lhe que não tinha mais hora e meia para passar com ele. Respondeu: então, quando tiver tempo, telefone. Tempo não tinha, mas arranjara tema para a crónica.
Professor universitário

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

TC obriga a rever despedimentos

RAQUEL MARTINS 
27/09/2013
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Constitucional chumba algumas normas do Código do Trabalho. Decisão tem efeitos retroactivos e obrigará empresas a reintegrar trabalhadores despedidos pelas regras chumbadas
A decisão do Tribunal Constitucional (TC), que ontem chumbou algumas normas do Código do Trabalho, vai obrigar a rever os despedimentos efectuados desde Agosto do ano passado. Em resposta a um pedido de fiscalização sucessiva do PCP, Bloco de Esquerda e PEV, o TC declarou inconstitucionais "com força obrigatória geral" a norma que colocava na mão dos patrões a escolha dos trabalhadores em caso de despedimento por extinção de posto de trabalho e as que colocavam a lei acima dos contratos colectivos. Proibição de despedimento sem justa causa e violação do direito da contratação colectiva foram os argumentos invocados.
Como o TC não restringiu os efeitos da declaração de inconstitucionalidade apenas para o futuro, a decisão tem efeitos rectroactivos, o que obrigará a que, em alguns casos, as empresas tenham que reintegrar os trabalhadores que foram despedimentos com base nas normas agora chumbadas. Do ponto de vista prático, a situação pode ser complicada. "É como se as normas chumbadas nunca tivessem existido. Tudo o que foi feito terá que ser desfeito", resume o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Tiago Duarte.
Também António Monteiro Fernandes, professor de direito do trabalho no ISCTE, e cujos trabalhos são citados ao longo do acórdão, alerta que "os despedimentos feitos por aplicação das normas agora inutilizadas ficam sem apoio legal".
O que significa que um trabalhador despedido por inadaptação ou por extinção de posto de trabalho com base nas normas inconstitucionais deve ser reintegrado na empresa e terá que devolver a indemnização. Mas há dúvidas sobre se essa obrigação abrange todas as situações e caberá aos tribunais a palavra final. A CGTP não tem dúvidas e além da reintegração, exige o pagamento das remunerações perdidas.
Governo procura alterativas
Contas feitas, o TC acabou por viabilizar uma parte significativa das medidas, naquela que era apontada no memorando da troika como uma reforma estrutural e que, ainda para mais, resultou de um acordo de concertação social que juntou patrões, governo e UGT (a CGTP não aceitou as medidas).
O executivo entende que o acórdão "não põe em causa a profunda e importante reforma laboral" e que "as medidas mais importantes foram validadas". Numa nota à comunicação social, o ministro do Emprego e da Segurança Social diz que quer encontrar "rapidamente alternativas no respeito pelos critérios enunciados" pelo TC e pede a colaboração dos parceiros sociais. Do lado sindical a porta parece estar fechada (ver texto na página 4).
Despedimento por inadaptação por quebra de produtividade, bancos de horas, suspensão de quatro feriados, revogação dos três dias de férias por assiduidade e cortes no pagamento do trabalho suplementar saíram incólumes da análise dos juízes. O Governo "não se pode queixar", nota Monteiro Fernandes.
Do ponto de vista das empresas, acrescenta Pedro Furtado Martins, professor da Universidade Católica que também é citado no acórdão, foram viabilizadas as medidas mais importantes como o banco de horas individual e a redução do pagamento do trabalho suplementar. Do lado dos sindicatos e dos trabalhadores, o especialista realça o reconhecimento do direito à contratação colectiva - argumento usado pelo TC para chumbar a possibilidade de a lei se sobrepor aos contratos colectivos em matéria de férias e descanso compensatório - e a revogação das mudanças na extinção do posto de trabalho (ver caixa ao lado).
12 declarações de voto
Num acórdão votado por 13 juízes, houve 12 declarações de voto. Uma delas do próprio presidente do TC que votou vencido na norma que permite despedimento por inadaptação sem que haja modificações do posto de trabalho e que acabou por ser viabilizada pela maioria.
O relator do acórdão, Pedro Machete, também fez uma declaração de voto, mas para discordar da declaração de inconstitucionalidade do despedimento por inadaptação. Os bancos de horas e as normas que restringem a negociação colectiva também foram alvo de debate por parte dos juízes conselheiros.
Esta não é a primeira vez que o TC é chamado a pronunciar-se sobre Código do Trabalho. Em 2003, governava Durão Barroso, Jorge Sampaio, então Presidente da República, teve dúvidas sobre algumas normas, entre as quais a limitação do direito à greve, e o TC deu-lhe razão. Em 2008, no governo de Sócrates, Cavaco questionou a norma que alargava para 180 dias o período experimental da generalidade dos trabalhadores, que foi considerada inconstitucional.

Massagens

EDUARDO PRADO COELHO - quarta-feira, 27 de Setembro de 2006
Penso que a vida portuguesa está dominada por algumas palavras, muitas vezes siglas que passam de boca em boca. Uma delas é OPA. Havia mesmo um jornal que tinha o "diário das opas". Não sei ao certo do que se trata nos seus meandros económicos. Fico-me por uma ideia geral que já permite afirmar que é coisa que não está ao meu alcance e excede claramente os meus recursos. Vou chegar ao cabo dos meus dias sem ter feito uma OPA a ninguém, nem mesmo uma opazinha modesta e sem ambições. Paciência: temos de viver com aquilo que temos.
A segunda coisa que entrou em moda são as providências cautelares. Cautela e caldos de galinha... Mas não é bem disso. Um preso é contra a troca de seringas nas prisões, e pronto, lança uma providência cautelar. Eu acho que o meu vizinho é demasiado ruidoso e lá vai mais uma providência cautelar. Tanto quanto entendo, trata-se de uma modalidade formalmente jurídica daquele velho princípio de "alto e pára o baile". Porque, enquanto o tribunal não se pronuncia (e Deus sabe que nem sempre são céleres), não se pode fazer mais nada. Resta-nos ir à praia ou passear em Monsanto: não há nem reuniões, nem nomeações, nem decisões.
Mas há outra sigla que entrou em voga e que hoje está em todo o lado. Trata-se de "SPA", que já não designa a Sociedade Portuguesa de Autores, mas, sim, uma forma de tratarmos do nosso corpo para que ele se torne mais alto, mais belo e mais feliz (sobretudo no amor). SPA começou por querer dizer a saúde pela água, mas agora pode ser água, vinho, laranjada ou salsaparrilha. Comprei um gel de banho que diz que é SPA, o que já ultrapassa o meu entendimento. Todos os hotéis, mesmo os nas aldeias do interior mais profundo, anunciam o seu SPA. A minha existência já não teria sentido sem um SPA de vez em quando: massagens faciais, massagens nos pés (óptimo, óptimo), massagens no crânio, deslocando levemente os ossos do meu clandestino esqueleto, massagens nas costas, pedras quentes sobre o corpo, aromoterapia, tudo converge para incentivar o meu bem-estar e proporcionar-me mais uns anos de vida (que a vida eterna, essa, já não está ao alcance do SPA). Trata-se de uma apoteose daquela relação com o corpo que tinha as suas práticas já consolidadas (no Brasil, tomos os meus amigos iam para a "malharão"). Depois descobri um modo extremamente agradável de passar o tempo: as massagens no aeroporto de São Paulo (já estão a chegar até nós"). Mas trata-se não apenas da saúde do corpo, mas dos prazeres sempre infindáveis desse corpo - que por sinal é o meu...
P.S. - Confesso o meu erro. Induzido por uma informação que não era fidedigna, escrevi que O Livro do Desassossego era caro. Mas nada disso. Num esforço assinalável, o editor, Assírio e Alvim, conseguiu que esta magnífica edição se venda por 25 euros. Comprem, portanto, porque compensa.

Professor universitário

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

José Rodrigues Migueis: 25 de Setembro de 1978

Uma mulher que conheceu de perto Marcel Proust – timorato, pouco falador, desajeitado no vestir, e até, por fim, algo seboso – dizia dele: «Nunca conheceu pessoalmente os duques nem as autênticas princesas de que fala. Utilizou informações de segunda mão. Nem eles e elas o teriam recebido, pois só tinham relações com gente da sua igualha.» (Muito embora, desde Napoleão III e sob a Terceira República, tenham sido muito numerosas as alianças matrimoniais entre a velha aristocracia francesa, desdoirada, e a classe ascendente dos judeus endinheirados. Filho de mãe israelita, Proust tinha uma ardente curiosidade pelo «grande mundo» a que sonharia pertencer.) O curioso é que, dentre tantas personagens, a Albertine disparue, que me seduziu pelos meus vinte e poucos anos, era não duquesa mas chauffeur de camião! Ah, os poderes alquimizantes do génio!
Viajando pela Espanha, aos inúmeros espanhóis que lhe perguntavam como ia a política na sua pátria, este português respondia com o sotaque nacional: «Pués, la Democracia Socialista en Portugal está cada dia más sucia y menos lista!»

“Tablóides” 

Desassossego e loucura

EDUARDO PRADO COELHO - segunda-feira, 25 de Setembro de 2006
"Às horas em que a paisagem é uma auréola de Vida, e o sonho é apenas sonhar-se, eu ergui, ó meu amor, no silêncio do meu desassossego, este livro estranho como portões abertos numa casa abandonada." Quem escreveu esta frase magnífica? Fernando Pessoa, em obra atribuída a Bernardo Soares (que ele diz não ser propriamente um heterónimo, mas um "semi-heterónimo"). Esta teria sido a frase que Pessoa imaginara para iniciar o seu "Livro do Desassossego".
Lembro-me ainda, no princípio dos anos 80, quando o meu pai, com mais duas colaboradoras, preparava a primeira edição desta obra extraordinária. Já nessa altura o grande problema era a forma de ordenar os múltiplos fragmentos textuais. Além disso, para além dos passos que Pessoa considerara como fazendo parte dessa obra futura, havia, como hoje continua a haver, os textos sem indicação precisa, que poderiam (ou não) ser incluídos na obra. Segui de perto as dúvidas do meu pai, recomendando, não sei se certa, se erradamente, que criasse manchas temáticas, mas deixasse ao livro uma flutuação própria, evitando qualquer ordem rígida. Mas depois verificou-se que cada edição que aparecia escolhia a sua própria ordem. Alegando que era preciso apresentar uma personalidade que os franceses conheciam mal, Robert Bréchon escolheu uma ordem que partia das informações mais concretas e biográficas para os textos mais especulativos. De qualquer modo, em toda a parte do mundo, os leitores acharam que se tratava de uma espécie de diário fora dos dias do próprio Fernando Pessoa.
Saiu agora uma magnífica edição, concebida por Richard Zenith, do Livro do desassossego (é ele quem propõe a supressão do artigo definido), na Assírio e Alvim (volume cartonado, impressão excelente, mas preço excessivamente caro). Acrescenta-se logo na capa "composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa". Será que terá a repercussão que merece?
Há um estranho fenómeno que não me parece fácil de explicar. O Livro do desassossego é uma das grandes obras da literatura portuguesa, e aquela que melhor representa Fernando Pessoa no estrangeiro. É unanimemente considerada como magistral, e um dos grandes diários do século XX. Contudo, não é muito lida em Portugal, nunca aparece na lista dos livros que se recomenda ler aos alunos, e não é incluída nas antologias escolares (onde encontramos todo o bicho careta). Como se explica esta desatenção? Porque o livro não tem uma estrutura fixa? Porque é obviamente uma obra inacabada, que aumenta ou diminui conforme os seus editores? Porque se acha demasiado difícil? Não sei. Mas valeria a pena reflectir sobre isto de modo a corrigir esta manifesta injustiça.

Professor Universitário

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

«PAÍSES PECADORES»

O meu amor pela língua alemã, berço, dir-se-ia «natural», de pensamento filosófico, e pelos poetas de língua alemã, e pela música «de língua alemã» (pois à linguagem da música talvez não seja indiferente o Ser da própria língua), fazem-me recalcar aspectos mais sombrios da cultura (isto é, da língua) alemã que, como vulcões adormecidos, não raro se manifestam sob a forma de barbárie.
Celan, que perdeu pais, família e amigos nos campos de extermínio (onde ele próprio sofreu durante anos, sujeito a todo o tipo de violências), optou – mesmo dominando outras línguas, designadamente o yidiche, mas também o romeno, o russo, o francês, o inglês, até o português – por escrever a sua poesia atravessando desesperadamente a «escuridão assassina» da língua dos torcionários e procurando encontrar nela a perdida luz da língua de sua mãe.
É nas vertentes mais obscuras e sinistras da língua alemã que bebe a língua que fala o comissário europeu para a Energia, o alemão (do partido de Merkel) Guenther Oettinger que, em entrevista ao Bild, propôs um «castigo» para os países com défice excessivo: a colocação das «bandeiras dos países pecadores a meia haste nas fachadas dos edifícios comunitário. «Países pecadores»: a religião da usura evoca hoje perigosamente pecados mortais (que só Oettinger parece ter esquecido) da Alemanha pelos quais a sua bandeira haveria que ficar a meia haste durante muitos séculos.


Manuel António Pina - JN, 12/09/2011

terça-feira, 10 de setembro de 2013

UMA BOA CAUSA

As férias impediram-me de louvar aqui o novo "Estatuto do Deputado" publicado em Julho no DR que prevê que cada deputado passe a ter um assessor "pessoal", além dos que já têm os grupos parlamentares. A medida contribuirá decerto decisivamente para os 150 000 novos postos de trabalho prometidos no programa do Governo, mesmo custando (adivinhem a quem) entre 4,6 e 7 milhões de euros por ano.
Para já serão só mais 230 empregos, mas outros hão-de vir. Iremos, pois, eleger 230 deputados e, estes elegerão depois, entre cônjuges, familiares e amigos seus e do Partido, mais 230 para trabalharem (ou, se for o caso, dormirem na bancada) por eles. Nesta altura, o PS tem já 76 assessores a quem a AR paga 2,2 milhões de euros por ano; o PSD 53 (1,7 milhões); o PCP 24 (660 mil), o CDS 22 (660 mil), o BE 26 (524 mil), o que dá um total de 201 assessores e uma média de 0,87 assessores por deputado (quem não está com meias medidas é o BE: 3,25 assessores por deputado).
Feitas as contas, cada assessor ganha, em média, 2000 euros por mês, o que, nos tempos que correm, não lhes deve dar motivo de queixa. Vai ser preciso, claro, fechar mais urgências, maternidades, hospitais e escolas e despedir mais professores e funcionários públicos. Mas é por uma boa causa.


JN,10.09.2007 - Manuel António Pina

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

2 – Setembro (domingo). [1990]

Como é que os outros não vêem? Ou serei eu mesmo um tarado? Porque a coisa mete-se pelos olhos dentro. Há hoje apenas um problema que é o de o homem bastar-se a si próprio, viver em harmonia consigo dentro dos seus estreitos limites. Mais nada, mais nada. A solução religiosa são restos a desaparecer ou o desespero de quem se não resigna. Mas como admitir-se indefinidamente que se é uma toupeira? Onde a religião parece ainda funcionar, como no Islão, serve apenas aos ambiciosos de estratagema político. O tiranete do Iraque cita o Corão mas é evidente que não acredita nele. Mas as massas talvez acreditem e é com elas que tem de abastecer-se. A guerra hoje, se não é a expressão clara de interesses económicos, é um processo de fuga pelo aventureirismo. Porque o risco é um prazer do homem, desde o jogo à loucura de se atravessar o Atlântico a remos. Já houve. E a guerra é um bom meio de se desafiar o destino. Mas porque os aventureiros são poucos, um exército é difícil organizá-lo. Na actual ou iminente guerra do Golfo, a Europa encolhe-se porque não tem uma ideologia a mobilizá-la. E é exactamente por isso que ela vendeu aos árabes as armas da destruição e vende agora aos povos ameaçados as contra-armas para se defenderem. A ambição económica foi sempre a grande motivação para as guerras. Mas era isso encoberto com a pureza de uma ideologia, genericamente religiosa, como o soube o comunismo que fez do Partido um Absoluto, ou o sabem os que se julgam oprimidos por uma injustiça e desejam libertar-se dela. E como haverá sempre injustiças ao que se julgue oprimido, haverá sempre guerras circunstanciais. Mas o problema do homem em si ficará sempre em aberto e a expressão final da guerra será o desespero ou o jogo do aventureiro. A América defende os seus interesses ou ambições económicas. Mas é altamente problemático que os combatentes interiorizem uma guerra como sua. A América, de resto, é um país atrasado em relação ao racionalismo mortífero da Europa e isso pode dar-lhe uma ajuda. É curioso, aliás, que os inimigos ideológicos tradicionais da América hesitem agora na sua condenação. Porque simplesmente a Rússia (não já a URSS...) se abstém na condenação e dá mesmo o seu apoio discreto. Mas estes ideólogos anti-americanos parecem esquecer que o triunfo do Iraque seria amanhã a ambição imperialista que substituiria o imperialismo da outra. Os defensores da libertação dos países africanos – como eu sou – nada dizem dos tiranetes que imediatamente se entronizaram no poder com uma violência maior que a dos que os oprimiam. Em que é que um Idi-Amin ou um Bukasa, ou mesmo um Mobutu, foram ou são amantes da liberdade e da justiça? Nós amamos uma e outra, mas devemos saber que os promotores da libertação não era a liberdade que amavam mas a sua ambição. Ser inimigo da América em nome da justiça humana deve implicar a certeza de que os que se lhe opõem e ela combate serão amanhã os seus substitutos nos mesmos desígnios. Os árabes não pretendem apenas combater o imperialismo americano mas recompor o seu império de mil anos. A besta do Hussein cometeu já o crime de anexar o Koweit – e foi por isso que a maioria dos países árabes estão contra ele. Mas se triunfar, ele estenderá o seu domínio sobre outros países árabes, a começar pela Arábia Saudita. Curioso é que se não repare muito no facto de outros tiranetes quererem chamar a si o poder e o mandato de chefes de um novo império árabe. E é por isso que o Kadhafi, que teve o mesmo sonho, se mantém reservado em face do seu concorrente que é o Hussein.
Mas desviei-me um pouco. O que eu queria dizer era que estas guerras acidentais, mesmo com grande contabilidade de mortos, são apenas um intermezzo ou até um divertissement pascaliano, em face do grande problema de hoje que é o niilismo total e a necessária reorganização do homem nos seus estritos limites. Aliás, o célebre texto do Fukuyama (que eu também comentei) não foi assim uma idiotice como o meu amigo Ed. Lourenço afirmou ou sugeriu. O essencial desse texto está certo. Só o que não está certo é supor que a morte das ideologias envolveria o fim de todas as guerras. Porque a guerra é intrínseca ao homem desde as lutas dos clubes ou dos bairros. Mas uma guerra geral, só a ideologia a pode alimentar. Ora mesmo o islamismo é improvável conglomerar-se num todo para uma guerra que só poderia ter como inimigo o Ocidente, desprovido já de qualquer ideologia, mesmo a do nacionalismo. Mas além de que há outros Rushdie em fila de espera, há todo o Ocidente que não poderia ficar-se como mero espectador. E no caso do Golfo já se manifestou contra o Hussein, decerto porque bem sabe que o seu triunfo não se ficaria por ali. Além de que o petróleo também mata a sede do Japão e da China.
De todo o modo, o Mundo inteiro está suspenso do desfecho da crise. Os comentadores são quase unânimes em que a guerra é inevitável. E o nosso imaginário aterra-se com o terrível disso. Será talvez essa a razão por que eu ainda não acredito. Mas também ninguém acredita na sua morte – e morre mesmo. Nasci durante a Primeira Guerra, fiz-me gente durante a de Espanha e a Segunda, custa-me a crer que morra com a Terceira. Mas a vida é inverosímil e o mais incrível é a sua medida, ou seja a sua verdade.

Vergílio Ferreira: conta-corrente / nova série / II [1990]

2 de Setembro [1966]

Todo o dia a ler jornais da Cuba revolucionária – de cuja leitura saí mais uma vez com o sentimento de inveja, por não poder viver o entusiasmo, o heroísmo e a alegria (Sim, a alegria. O tal «paraíso»...) da Revolução-Que-Não-Mente com que sonho desde miúdo... Assistir, em suma, à ascenção das classes populares ao poder e ao gozo do planeta, através de mil obstáculos, estorvos, desesperos, malogros, alegria, dignidade...
O mundo, finalmente, com sentido. Provisório.

José Gomes Ferreira, em DIAS COMUNS – I. PASSOS EFÉMEROS – Diário

ANTES DA CRÓNICA

Interrogo-me muitas vezes sobre o que será uma crónica de jornal. No meio das dispersas solicitações e emoções de cada dia, arrastado, como toda a gente, no rio da vida tumultuosamente correndo fora de si e dentro de si, revoltado, enternecido, surpreendido, ou tão-só, também ele, vencido ou resignado, é natural que o cronista em certos dias se detenha e que os seus olhos e o seu coração (e as suas palavras) hesitem: que escrever e para quê? Em muitas ocasiões, diante do papel ou do perplexo «écran» do computador, me pergunto isso mesmo: que escrever e para quê? E cada uma destas crónicas é talvez uma resposta – indecisa e inconclusa, eu sei – a essa pergunta elementar.
Os jornais cansam-me: o primeiro-ministro faz promessas num comício; o presidente passa férias no Algarve; os partidos da oposição promovem conferências de Imprensa; o secretário de Estado da Cultura diz que não disse e o ministro das Finanças não diz; os maus bombardeiam Sarajevo e matam os bons; o Papa convalesce de uma operação; um grupo «rock» canta em Lisboa... Estou sentado na sala, olhando o gato que brinca aos meus pés, e penso que nenhuma coisa que possa vir em jornais é tão séria e tão essencial como o seu grave e ruidoso conflito com o saco de plástico.
Tenho tentado transformar os monótonos títulos de todas as primeiras páginas em decassílabos e compor com eles díspares inventários surrealistas. A verdade é que um verso (fosse eu capaz de escrever um bom verso!), ou um poema, têm certamente mais e mais óbvias hipóteses de durar do que um primeiro-ministro ou um presidente! Verifique você mesmo, leitor: faça as contas aos primeiros-ministros e aos presidentes – das centenas que têm sido, ao longo dos tempos e dos lugares, «manchette» nas gazetas e nos jornais – de que é ainda capaz de se lembrar, e compare-os com os versos, os poemas, os poetas, que – mesmo sem ser um letrado, mesmo que apenas vagamente – lhe virão à cabeça ...
Outro dia caiu-me nas mãos um velho exemplar do Diário de Notícias, também ele cheio de nomes de gente importante (ministros, deputados, militares, comerciantes), de tragédias, de «faits divers». E, todavia, o único acontecimento que, em todo o jornal, me dizia ainda alguma coisa, umas poucas dezenas de anos depois, era uma pequena nota de duas ou três linhas numa página interior: um certo «sr. Mário de Sá-Carneiro» tinha publicado um livro de versos! Daqui a 50 ou 100 anos, o mais que algum rato de Universidade conseguirá provavelmente dizer sobre Cavaco Silva, depois de ter vasculhado em todos os arquivos, é que foi um primeiro-ministro do tempo de Eugénio de Andrade...
As páginas dos jornais são feitas da matéria da morte e do esquecimento. E as crónicas de jornal, filhas de Cronos, o tempo que passa, como também nós, homens que passamos, são pobres seres insubstanciais e irrisórios, provavelmente sem sentido, provavelmente inúteis. Que escrever, pois? E para quê?
Mas da Rua de Santo Ildefonso e da Rua de Ceuta chegam-me cartas de amigos; outra, comovente (eu é que sei!), chega-me da Rua de Nove de Abril; um desconhecido aborda-me no café; outro manda-me um velho recorte e uma fotografia; outro ainda escreve-me longamente falando das frágeis e inseguras palavras de que um dia a crónica aqui se fez e que irremediavelmente se perderam. E eu penso: talvez, afinal, alguma forma de efémera eternidade possa (quem sabe?) animar a furtiva vida de um jornal, um breve reflexo, uma fugaz emoção, possa, com um pouco de sorte, pulsar na notícia, na reportagem, na crónica e, por um instante, bater unanimemente no coração de outro homem, uma anónima identidade misteriosamente gerar-se entre desconhecidos pelo milagre de um verbo ou de um adjectivo, um clandestino sangue transbordar da página impressa e contagiar a inúmera vida que, lá fora, incertamente vive.
O gato, cansado de brincar, adormece no parapeito da janela. E a crónica, subitamente e injustificadamente feliz, começa então a escrever-se em mim.


Manuel António Pina - JN, 02/09/1992