Abri mais uma
vez o Sésamo da infância. É nele que guardo o pecúlio com que vou saldando as
contas do mundo.
«Há coincidências
estranhas num destino humano. Nos meus remotos tempos de menino realizavam-se
por esta altura, numa casa religiosa aqui de Mateus, uns para
mim misteriosos retiros a que duas senhoras lá da minha aldeia assistiam
invariavelmente. Viajavam de burro. E o arreeiro era sempre eu, descalço, às
topadas nas pedras dos atalhos, a comer o pó levantado pelo chouto das
ferraduras. Trazia-as à tardinha, pela fresca, voltava com as azémolas, e vinha
busca-las na data aprazada. Este grande palácio, então fabuloso na imaginação
popular – tinha trezentas e sessenta e cinco janelas como os dias do ano –
balizava-me as emoções da caminhada. Quando o descortinava ao fundo da
paisagem, cercado dos seus belos jardins e encimado pelos seus pináculos e chaminés,
alegrava-se-me o coração. Era o alívio da chegada, o suor enxuto, o deslumbramento
dos olhos. De regresso, montado numa das jumentas, mal o perdia de vista entrava
em pânico. O toque das Trindades ressoava no vale. O sol escondia-se por detrás
do Marão. Adensava-se o
crepúsculo. O resto da jornada teria de ser feito a tactear a noite. E com dois
lustros de idade não se enfrentam de ânimo leve os fantasmas da escuridão.
Ora quis o
acaso que, quase no termo de uma atribulada existência, eu começasse a
frequentar por minha vez, nesta hospitaleira mansão, outros periódicos recolhimentos
menos obscuros no meu entendimento. E que no decorrer de um deles fosse surpreendido
pela notícia de que, na honrosa companhia do grande poeta do Brasil, Carlos Drummond
de Andrade, acabara de ser distinguido, com o Prémio Morgado de Mateus.
Sem querer
forçar o paralelo, não-posso deixar, contudo, de associar no meu pensamento a
imagem da criança de outrora à do homem encanecido de hoje. E associá-las num
misto de humildade e conformação, a perguntar a mim mesmo se os caprichos da
roda da fortuna nos permitirão evitar certas horas, boas ou más.
Temperamentalmente avesso a galardões de qualquer natureza, acabei no entanto
por aceitar alguns deles. É que não há uniformidade de critério possível
perante a surpreendente e paradoxal diversidade da vida. Que poderia eu fazer?
Recusá-los por sistema, pura e simplesmente? Assim procedi quando tudo dependia
da minha exclusiva vontade. Noutras ocasiões, porém, não era tão fácil a opção.
Ao fim e ao cabo, nem a liberdade é livre. Para se exercer necessita pelo menos
de uma constelação de referendas. Sabem-no bem todos aqueles que, embora
autónomos, se vinculam aos valores da comunidade em que se integram e às leis
formais da correcção. Além de que não seria curial enjeitar homenagens quando o
seu significado diz mais respeito à pátria e à cultura do que a si próprio.
Nenhuma palavra,
por mais sincera, é capaz de dar cabal testemunho da aflição que sinto na pele
de laureado, da pouca valia em que me tenho e da convicção em que estou de que
outros poderiam substituir-me neste transe. Por isso, no momento em que – sob a
égide do nobre diplomata que tanto contribuiu para o tomar conhecido na Europa
letrada – festejamos o génio de Camões,
limito-me a declarar solenemente que é em nome da glória da poesia que aceito a
recompensa de lhe ter sido apenas fiel. E aceito-a, ainda, movido pela cisma de
que Mateus tinha um sentido oculto na trama dos meus dias. Queria dizer
principio e dizer fim. O princípio de que estou longe e o fim de que estou
perto.
O rapazinho
que, inocentemente, olhava estas paragens como o mais dilatado horizonte mítico
do seu agro nativo, volta de novo aqui velho e cansado, depois de calcorrear
todas as veredas da ilusão e da desilusão. E volta para quê? Os fados é que o
sabem exactamente, eles que, na sua ambiguidade, participam ao mesmo tempo da
fatalidade e da quimera. Racionalmente rebelde ao império dos agoiros, deixo-me
tentar pelo devaneio. E ponho-me a imaginar que voltei para repetir noutra
escala as emoções do passado, na secreta esperança de que o espírito que paira
neste solar, e que a vossa generosidade quis que hoje incidisse também na minha
pessoa, fique desta vez a iluminar o caminho que ainda me falta percorrer».
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