Em Castelo Novo
Há mais de 30
anos escrevi:
Castelo Novo é uma das
mais comovedoras lembranças do viajante. Talvez um dia volte, talvez não volte
nunca, talvez até evite voltar, apenas porque há experiências que não se
repetem. Como Alpedrinha,
está Castelo Novo construído na falda do monte. Daí para cima, cortando a
direito, chegar-se-ia ao ponto mais alto da Gardunha. O viajante não
tornará a falar da hora, da luz, da atmosfera húmida. Pede apenas que nada
disto seja esquecido enquanto pelas íngremes ruas sobe, entre as rústicas
casas, e outras que são palácios, como este, seiscentista, com o seu alpendre,
a sua varanda de canto, o arco profundo de acesso aos baixos, é difícil
encontrar construção mais harmoniosa. Fiquem pois a luz e a hora, aí paradas no
tempo e no céu, que o viajante vai ver Castelo Novo. Também escrevi sobre
pessoas concretas há trinta anos: A uma velhinha que à sua porta aparece,
pergunta o viajante onde fica a Lagariça. É surda a
velhinha, mas percebe se lhe falarem alto e puder olhar de frente. Quando
entendeu a pergunta, sorriu, e o viajante ficou deslumbrado, porque os dentes
dela são postiços, e contudo o sorriso é tão verdadeiro, e tão contente de
sorrir, que dá vontade de a abraçar e pedir-lhe que sorria outra vez. De José
Pereira Duarte, uma das pessoas mais bondosas que conheci na minha vida escrevi
que olha o viajante como quem mira um amigo que já ali não aparecesse há muitos
anos, e toda a sua pena, diz, é que a mulher esteja doente, de cama: «Senão
gostava que estivesse um bocadinho em minha casa.» Hoje estivemos com a filha e
o genro de José Pereira Duarte, a velhinha já não está, mas outras pessoas
amáveis apareceram em Castelo Novo e voltei a sair com o mesmo espírito de há
trinta anos. Se o elefante Salomão
por aqui passou, as pessoas que compunham a comitiva terão sentido o mesmo.
Acolhimentos como estes não se improvisam.
José Saramago, O CADERNO
Sem comentários:
Enviar um comentário