Espanha negra
La
España negra é o título de um livro do pintor José
Gutiérrez Solana (1886-1945) de leitura às vezes difícil e sempre incómoda,
não por razões de estilo ou ineditismos de construção sintáctica, mas pela
brutalidade do retrato de Espanha que nele é traçado e que não é outra coisa
senão a transposição da sua pintura para a página escrita, uma pintura que foi
classificada como lúgubre e «feísta», na qual fez reflectir a atmosfera da
degradação da Espanha rural da época, mostrada em quadros que não recuam diante
da expressão do mais atroz, obsceno e cruel que existe nos comportamentos
humanos. Influenciado pelo tenebrismo barroco, muito em particular por Valdés Leal, é
também evidente a impressão que sobre ele exerceram as pinturas negras de Goya. A Espanha de
Gutiérrez Solana é sórdida e grotesca no mais alto grau imaginável, porque isso
foi o que encontrou nas chamadas festas populares e nos usos e costumes do seu
país.
Hoje, Espanha
não é assim, tornou-se numa terra desenvolvida e culta, capaz de dar lições ao
mundo em muitos aspectos da vida social, objectará o leitor destas linhas. Não
nego que poderá ter razão na Castelhana,
nas salas do museu do
Prado, no bairro de Salamanca
ou nas ramblas
de Barcelona, mas não faltam por aí lugares onde Gutiérrez Solana, se fosse
vivo, poderia colocar o seu cavalete para pintar com as mesmas tintas as mesmíssimas
pinturas. Refiro-me a essas vilas e cidades onde, por subscrição pública ou com
apoio material das câmaras municipais, se adquirem touros às ganadarias para
gozo e disfrute da população por ocasião das festas populares. O gozo e o
disfrute não consistem em matar o animal e distribuir os bifes pelos mais
necessitados. Apesar do desemprego, o povo espanhol alimenta-se bem sem favores
desses. O gozo e o disfrute têm outro nome. Coberto de sangue, atravessado de
lado e lado por lanças, talvez queimado pelas bandarilhas de fogo que no século
XVIII se usaram em Portugal, empurrado para o mar para nele perecer afogado, o
touro será torturado até à morte. As criancinhas ao colo das mães batem palmas,
os maridos, excitados, apalpam as excitadas esposas e, calhando, alguma que não
o seja, o povo é feliz enquanto o touro tenta fugir aos seus verdugos deixando atrás
de si regueiros de sangue. É atroz, é cruel, é obsceno. Mas isso que importa se
Cristiano Ronaldo
vai jogar pelo Real Madrid?
Que importa isso num momento em que o mundo inteiro chora a morte de Michael Jackson? Que
importa que uma cidade faça da tortura premeditada de um animal indefenso uma
festa colectiva que se repetirá, implacável, no ano seguinte? É isto cultura? É
isto civilização? Ou será antes barbárie?
José Saramago, O CADERNO
Sem comentários:
Enviar um comentário