Paradoxal
Outras vezes
me perguntei por onde andava a esquerda, e hoje tenho a
resposta: por aí algures, humilhada, a contar os míseros votos recolhidos e à
procura de explicações por os ver tão poucos. O que chegou a ser, no passado,
uma das maiores esperanças da humanidade, capaz de mobilizar vontades pelo
simples apelo ao que de melhor caracterizava a espécie humana, e que veio
criando, com a passagem do tempo, as mudanças sociais e os erros próprios, as
suas próprias perversões internas, cada dia mais longe das promessas primeiras,
assemelhando-se mais e mais aos adversários e aos inimigos, como se essa fosse
a única maneira de se fazer aceitar, acabou por cair em meras simulações, nas
quais conceitos doutras épocas chegaram a ser utilizados para justificar actos
que esses mesmos conceitos haviam combatido. Ao deslizar progressivamente para
o centro, movimento proclamado pelos seus promotores como demonstração de uma
genialidade táctica e de uma modernidade imparável, a esquerda parece não ter
percebido que se estava a aproximar da direita. Se, apesar de tudo isto, ainda
é capaz de aprender com uma lição, esta que acaba de receber vendo a direita
passar à sua frente em toda a Europa, então terá de interrogar-se sobre as
causas profundas do distanciamento indiferente das suas fontes naturais de
influência, os pobres, os necessitados, mas também os sonhadores, em relação ao
que ainda resta das suas propostas. Não é possível votar na esquerda se a esquerda
deixou de existir.
Curiosamente,
e este é o paradoxo, o político a quem o título deste comentário se refere, é
precisamente aquele que nesta altura preside aos destinos do país que desde há
longuíssimo tempo tem desenvolvido uma política em todos os aspectos imperial e
conservadora: Barack Obama.
Dá que pensar. Uma acção política que, como tenho dito, pouco mais pretende que
salvar os móveis de um capitalismo desregrado que esteve a ponto de devorar-se
a si mesmo, aparece-nos agora, quase quase, como a realização de um sonho da
esquerda. Aposto que muita gente, progressistas, socialistas, comunistas, anda
por aí a perguntar-se: «E se Obama fosse presidente do meu partido?» Talvez
seja a situações como esta que chamamos a ironia da História… Talvez seja,
tão-somente, a importância do factor pessoal.
José Saramago, O CADERNO
Sem comentários:
Enviar um comentário