Sabato
Quase cem
anos, noventa e oito exactos, são os que hoje está cumprindo Ernesto Sabato, cujo
nome escutei pela primeira vez no velho Café
Chiado, em Lisboa, aí pelos remotos anos 50. Pronunciou-o um amigo que
inclinava os seus gostos literários para as então mal conhecidas literaturas
sul-americanas, ao passo que nós, os outros membros da tertúlia que ali nos
reunia ao fim da tarde, pendíamos, quase todos, para a doce e então ainda
imortal França, salvo algum excêntrico que se gabava de conhecer de cor e
salteado o que nos Estados Unidos se escrevia. A esse amigo, que acabei por perder
no caminho, devo a incipiente curiosidade que me levou a nomes como Julio Cortázar, Borges, Bioy Casares, Astúrias, Rómulo Gallegos, Carlos Fuentes, e tantos
outros que se me atropelam na memória quando os convoco. E havia Sabato. Por um
qualquer fenómeno acústico associei as três rápidas sílabas a um súbito golpe
de punhal. Conhecido como é o significado desta palavra italiana, a associação
haverá de parecer o que há de mais incongruente, mas as verdades são para se
dizerem, e esta é uma delas. El túnel
tinha sido publicado em 1948, mas eu não o havia lido. Nessa altura, com os
meus inocentes 26 anos, ainda seria muito o pão e o sal que teria de comer
antes de descobrir o caminho marítimo que haveria de conduzir-me a Buenos Aires… Foi aquele
meu inesquecível companheiro de mesa de café quem me proporcionou a leitura do
romance. Logo às primeiras páginas percebi até que ponto havia saído exacta a
ousada associação de ideias que me havia levado de um apelido a um punhal. As
leituras seguintes que fiz de Sabato, quer dos romances quer dos ensaios, só
viriam confirmar aquela minha intuição inicial, a de que me encontrava perante
um autor trágico e eminentemente lúcido que, além de ser capaz de abrir caminho
pelos corredores labirínticos do espírito dos leitores, não lhes consentia, nem
por um só instante, que desviassem os olhos dos mais obscuros recantos do ser.
Leitura por isso difícil? Talvez, mas leitura fascinante entre todas. A
amálgama de surrealismo, existencialismo e psicanálise que constitui o suporte «doutrinário»
das ficções do autor de Sobre
héroes y tumbas, não nos deveria fazer esquecer que este autoproclamado
«inimigo» da razão que se chama Ernesto Sabato é à falível e humilde razão
humana que acabará por apelar quando os seus próprios olhos se enfrentarem a
esse outro apocalipse que foi a sangrenta repressão sofrida pelo povo
argentino. Romances que se reportam a épocas historicamente determinadas e a
lugares objectivamente definidos, El túnel, Sobre
héroes y tumbas, Abbadón el
exterminador não fazem ouvir somente o grito de uma consciência
afligida pela sua própria impotência e a visão profética de uma sibila a quem o
futuro aterra, também nos avisam de que, tal como Goya (mais conhecido como pintor
que como filósofo…) já havia deixado constância na famosa gravura dos Caprichos:
foi sempre do sono da razão que nasceu, cresceu e prosperou a inumana
genealogia dos monstros.
Querido
Ernesto, é entre o temor e o tremor que decorrem as nossas vidas, e a tua não
podia ser excepção. Mas talvez não se encontre nos dias de hoje uma situação
tão dramática como a tua, a de alguém que, sendo tão humano, se nega a absolver
a sua própria espécie, alguém que a si próprio não perdoará nunca a sua
condição de homem. Nem todos te agradecerão a violência. Eu peço-te que não a
desarmes. Cem anos, quase. Estou certo de que ao século que acabou se virá a
chamar também o século de Sabato, como o de Kafka ou o de Proust.
José Saramago, O CADERNO
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