Se tivesse de
escolher três livros não tinha dúvidas nenhumas: Emílio e dos detectives,
Aventuras de Dona Redonda, Proezas e Tropelias do Serapião Tobias. Isto ainda
hoje. Li-os dúzias de vezes, com um prazer que jamais tornou a repetir-se, um
maravilhamento, uma alegria que não voltei a encontrar. Melhor que os
carrosséis, melhor que os carrinhos de choque, melhor que marcar um golo nos
jogos de hóquei. A par dos livros o hóquei era a outra paixão. O meu pai esteve
nos campeonatos da Europa de 1938, na Alemanha, fez parte do que chamavam O
Time Maravilha, do Benfica, havia em casa uma caixa de lata, cheia de medalhas,
com as quais se podia brincar, pôs-nos ao João e a mim em cima de patins, isto
aos cinco ou seis anos, e levava-nos a patinar todos os domingos de manhã
– Mais curvas
para a direita, mais curvas para a direita
aos treze
estava no balneário do Futebol Benfica, onde um dos miúdos, ao equiparmo-nos,
me apontou aos colegas
– O pai do
Ruço é doutor
e ninguém
acreditou, o miúdo para mim, a fim de tirar dúvidas
– Diz lá que o
teu pai é doutor
e eu
confirmei, envergonhado, aos catorze ou isso o treinador do Benfica, o senhor
Lisboa viu-nos patinar e no primeiro treino, na cabine cheia de retratos de
antigas glórias, lá estava o meu pai, nunca tive tanto orgulho nele como nesse
momento, muito mais tarde, numa entrevista para o jornal A Bola, vinha uma
fotografia com ele e os outros à partida para o campeonato na Alemanha e eu
cheio de orgulho outra vez, a sensação, para um garoto, de vestir a camisola
com emblema e tudo. É engraçado: o meu pai, que não nos tocava ou me tocava
para me bater, estava a assistir a um jogo nosso no pátio do meu avô
(lembro-me
disto com uma nitidez absoluta)
marquei um
golo a seguir a um lançamento da esquerda, numa sticada à primeira, e ele
correu a abraçar-me
– Grande golo,
grande golo
dizia ele
– Grande golo
todo a
brilhar, e nunca mais me abraçou. Fiquei parvo com aquilo, ainda me sinto parvo
com aquilo. Veio a correr e tudo
– Grande golo,
grande golo
e, como foi o
único abraço, deve ter sido a coisa melhor que para ele fiz na vida. Na época o
que me interessava eram os livros e o hóquei, escrevia que me desunhava,
rasgava tudo a seguir e, lateralmente, embasbacava-me com as meninas de botas
brancas e sainhas curtas da patinagem artística, que treinavam antes de nós e
às vezes ficavam por ali a assistir às proezas da gente. Nenhuma actriz de
cinema, mesmo aquelas dos filmes históricos, me impressionou tanto. E doía-me
no coração que não me ligassem nenhuma, nem sequer a esmola de um olhar,
sentadas na bancada ao lado das mães. Eu não existia para elas, era um ruço
qualquer. Julgo que os outros garotos sofriam o mesmo triste destino. Às vezes
encontrava-as no eléctrico para o liceu, mas sem as botas brancas, as sainhas,
e as piruetas meio desequilibradas perdiam a graça toda, a minha paixão
esfumava-se e as actrizes dos filmes históricos imensas em ecrãs imensos,
descobriam de imediato o unicórnio que existe em mim. O drama era que, se as patinadoras
não me ligavam nenhuma, com as actrizes não me coube melhor sorte: está para
nascer uma, uma só, não peço mais, que me piscasse o olho do ecrãs para o meu
lugar no segundo balcão onde, com os companheiros de turma, ia fazendo asneiras
e dizendo piadas parvas, porque os adolescentes são tão cretinos. Deviam ter
sido fuzilados no berço. E daí não sei, há adolescentes defuntos que me
perseguem ainda sob o manto protector da Igreja Católica, São Luís Gonzaga,
etc., horríveis de virtude, ou a nossa Sãozinha, agora um pouco esquecida, que
pena, que ofereceu a vida pela conversão dos pais e até possuía um almanaque só
dela, o Almanaque da Sãozinha, que a minha avó assinava, onde devotos
agradecidos relatavam milagres. Lembro-me de uma senhora muito crente, muito
pobre e muito cheia de fome, que descobriu não ter nada para comer na despensa,
rezou à Sãozinha e entrou-lhe um coelho pela casa dentro, que se deixou apanhar
e cozinhar numa docilidade absoluta, enquanto perfumes celestiais inundavam a
casa. Palavra de honra que é verdade, tenho esse número do Almanaque desde os
doze anos ou isso, eu que não guardo nada, de pasmado que fiquei. E poupo-vos
mais criaturas deste calibre, porque a única coisa pior do que um menino
insuportável é um menino bonzinho. Pensando melhor já não fuzilo ninguém no
berço, vivam as bestas sadias, preferíveis aos chatos dos milagres, sempre a
oferecerem a vida pela conversão da Rússia Comunista que bebe o sangue dos
jovens inocentes (sic) e dá injecções atrás da orelha aos nossos pais se os
apanharem a jeito. Quando me contrariavam com qualquer coisa, pateta para eles
e, para mim, vital, se tivesse uma seringa à mão injetava-os eu, não precisava
de ajuda dos comunistas para nada, e ficava a vê-los torcerem-se no soalho
– Perdoa,
filho
enquanto me
afastava a assobiar, vingado. Pelos dez anos já tinha na consciência uma boa
dúzia de cadáveres e não percebo porque não sou mais célebre do que Billy The
Kid que, ao arrebatarem-no ao nosso convívio, matava dezanove pessoas não
contando, explicava ele, os mexicanos. Escolher entre Billy the Kid e São Luís
Gonzaga é um problema que nem sequer se põe. E quanto aos perfumes celestiais
vou ali e já venho, quem é capaz de fazer amor com o Espírito Santo em cima
levante o braço. Só os ilusionistas, talvez, consigam isso, de pombo no ombro e
uma data deles a nascerem das mãos, mas com tanto pombo a nascer das mãos quem
consegue abraçar, quanto mais. Há pessoas a quem basta uma pagela do Sagrado
Coração de Jesus, cheio de espinhos, para que as hormonas se paralisem. Ou uma
santinha fosforescente. O meu amigo José Cardoso Pires usava uma expressão para
isto, e peço desculpa a ouvidos sensíveis: tira a tesão a um mocho. Ele achava,
o pecador, que a fotografia do pai à cabeceira inibia, ao passo que a
fotografia do marido ajudava, maridos a sorrirem na moldura, aprovando.
Pergunto-me como pude ser amigo de uma criatura repugnante a este ponto, de
maneira que o repreendia com severidade apontando-lhe, como dedo firme, o
caminho da virtude, alto e fragoso, mas no fim doce, suave e deleitoso. Vêem
como Os Lusíadas são capazes de meter um crápula nos eixos? E aí estou de acordo
com o outro, que sustentava que a poesia deve ter por objectivo a verdade prática,
estou de acordo mesmo ignorando o que verdade prática significa. Basta a
palavra verdade para eu começar com problemas.
– O que é a
verdade?
perguntava
Pôncio Pilatos e, neste ponto, poderia começar um texto erudito de quinhentas
páginas acerca do assunto. Por acaso apetece-me mas, por azar, não me dão mais
espaço. E por não me darem mais espaço me cerro, como diziam os antigos. Que
bonito, me cerro. Há qualquer coisa de flor nesta expressão e espero que a
primeira leitora que apanhar este brinde grátis lhe pegue devagarinho e enfeite
com ele o cabelo.
António Lobo Antunes
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