Formação (1)
Não ignoro
que a principal incumbência assinada ao ensino em geral, e em especial ao
universitário, é a formação. A universidade prepara o aluno para a vida,
transmite-lhe os saberes adequados ao exercício cabal de uma profissão
escolhida no conjunto de necessidades manifestada pela sociedade, escolha essa
que se alguma vez foi guiada pelos imperativos da vocação, é com mais
frequência resultante dos progressos científicos e tecnológicos, e também de
interessadas demandas empresariais. Em qualquer caso, a universidade terá
sempre motivos para pensar que cumpriu o seu papel ao entregar à sociedade
jovens preparados para receberem e integrarem no seu acervo de conhecimentos as
lições que ainda lhe faltam, isto é, as da experiência, madre de todas as coisas
humanas. Ora, se a universidade, como era seu dever, formou, e se a chamada formação
contínua fará o resto, a pergunta é inevitável: «Onde está o problema?» O problema
está em que me limitei a falar da formação necessária ao desempenho de uma
profissão, deixando de lado outra formação, a do indivíduo, da pessoa, do
cidadão, essa trindade terrestre, três em um corpo só. É tempo de tocar o
delicado assunto. Qualquer acção formativa pressupõe, naturalmente, um objecto
e um objectivo. O objecto é a pessoa a quem se pretende formar, o objectivo
está na natureza e na finalidade da formação. Uma formação literária, por
exemplo, não apresentará mais dúvidas que as que resultarem dos métodos de
ensino e da maior ou menor capacidade de recepção do educando. A questão,
porém, mudará radicalmente de figura sempre que se trate de formar pessoas,
sempre que se pretenda incutir no que designei por «objecto», não apenas as
matérias disciplinares que constituem o curso, mas um complexo de valores
éticos e relacionais teóricos e práticos indispensáveis à actividade
profissional. No entanto, formar pessoas não é, por si só, um aval
tranquilizador. Uma educação que propugnasse ideias de superioridade racial ou
biológica estaria a perverter a própria noção de valor, pondo o negativo no
lugar do positivo, substituindo os ideais solidários do respeito humano pela
intolerância e pela xenofobia. Não faltam exemplos na história antiga e recente
da humanidade. Continuaremos.
José Saramago, O CADERNO
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